ENSAIO
A pandemia e o capitalismo numérico
José Gil
A verdade é que este período de luta pela
sobrevivência física não gerou até agora nenhum sobressalto político ou
espiritual, nenhuma tomada de consciência da necessidade de mudar de vida. Não
gerou esperança no futuro.
A
pandemia da Covid-19 pode vir a modificar radicalmente o modo de vida das
sociedades actuais, pré e pós-industriais. Um factor decisivo dessa
transformação serão as novas tecnologias, que virão a ganhar uma importância
maior na economia e nas relações sociais. Formar-se-á um novo tipo de
subjectividade, a “subjectividade digital”, já em gestação nas sociedades
actuais, mas que, no futuro, se colocará no centro do novo “capitalismo
numérico”, como condição essencial do seu funcionamento. Entretanto, vivemos
uma crise de transição, que compromete as próprias subjectividades.
Pandemia e
desterritorialização
Mesmo
antes de ser declarada
a quarentena em Wuhan,
sete milhões de chineses saíram da cidade e espalharam-se pelo mundo. A região
da Lombardia, na Itália, que mantinha voos directos para a região mais
contaminada da China, foi rapidamente atingida. A França, a Alemanha, a
Espanha, o Reino Unido e, muito rapidamente a Europa, foram infectados.
Alastrando a todos os continentes, a pandemia cobriu o planeta em poucos meses.
Uma disseminação tão célere e imprevisível deveu-se às características do novo
vírus, mas só foi possível graças à deslocação intensa de indivíduos e grupos,
através da rede extraordinária de comunicações e transportes que liga hoje os
países uns aos outros.
Trata-se
de uma torrente imparável de gente sempre a ir e a vir, em que participam
homens de negócios, políticos, universitários e estudantes, turistas (em
turismo de massa ou individual)
e multidões que se deslocam para assistir a acontecimentos culturais,
desportivos ou religiosos, sem esquecer os milhões de migrantes fugindo da
guerra e da fome. Estas vagas imensas de pessoas que vão de um território a
outro, alimentam a desterritorialização geral, contínua, que não cessa de
crescer. Ao disseminar-se, o vírus da pandemia não fez mais do que percorrer o
mapa mundial da desterritorialização.
A
pandemia resultou da desterritorialização, é a manifestação extrema da doença
tecno-capitalista que há mais de dois séculos se infiltrou nas sociedades
humanas. E que, tal como um vírus, vai contagiando território após território,
país após país, continente após continente: é o capitalismo
global que transforma a Terra inteira,
submetendo-a, como um contágio epidémico, ao seu funcionamento. Se o novo
coronavírus prolonga o movimento desterritorializante da economia capitalista,
é porque esta é, no seu desenvolvimento e propagação, propriamente pandémica.
A
primeira reacção contra a pandemia visou, logicamente, conter a sua
proliferação: contrariando ao máximo a desterritorialização, impôs-se
a quarentena a centenas de cidades,
e confinaram-se os cidadãos nos seus locais de residência. Fecharam-se
aeroportos, estações de comboios, portos e estradas, sítios onde as
aglomerações de pessoas aumentam os riscos de contaminação. Porque a
desterritorialização implica não apenas a deslocação, mas também o seu
contrário complementar, os mais variados ajuntamentos de “pessoas sós”, que se
encontram nas gares ferroviárias ou nos festivais de música. Cancelaram-se
eventos de toda a espécie, proibiram-se saídas e passeios. Numa palavra, reterritorializaram-se
os indivíduos nas suas casas,
incentivando-os a cultivar um tipo de vida esquecido, por assim dizer
“arcaico”, familiar e mais “humano”, que o regime habitual de trabalho havia
sempre impedido.
O
confinamento universal e a reactivação de modos de vida supostamente
harmoniosos, mas já erodidos e ineficazes, levam à formação de novas
subjectividades, mais adaptadas à “economia numérica”. A generalização do
teletrabalho, a digitalização máxima dos serviços e a virtualização das
deslocações e das relações sociais terão, muito provavelmente, consequências
drásticas nas transformações da sociedade.
Se,
até aqui, se alargava a desfasagem crescente entre o desenvolvimento da
economia financeira global e os processos de subjectivação – que misturavam
subjectivações digitais e subjectivações arcaicas, estas ligadas ainda às
sociedades industriais e pré-industriais -, agora o vazio parece poder ser
preenchido. A época de transição chega ao seu fim.
A
nossa ideia é simples: a pandemia será o agente mediador da passagem de uma
fase histórica do capitalismo (o capitalismo industrial-financeiro) – cada vez
mais perturbada e caótica, cada vez menos viável no contexto geral da sociedade
e do Estado – para uma outra fase em que se procuram os ajustamentos
necessários entre as exigências económicas e as subjectividades que, em todos
os domínios, do teletrabalho às práticas de lazer, lhes correspondam
adequadamente.
Conseguir-se-ia,
assim, um equilíbrio, sem dúvida precário, mas que asseguraria o
desenvolvimento sem entraves do capitalismo digital: eis o que está inscrito,
eis o que visa o impulso imparável da dinâmica capitalista. Evidentemente,
serão precisas subjectividades apropriadas, com o máximo de consenso colectivo
e individual, e o mínimo de conflito.
Terá
sido necessário o surgimento
de uma pandemia mortífera para adaptar as subjectividades às novas exigências do
capitalismo global. A Covid-19 seria o trampolim a catapultar a colectividade
para um nível superior, o da sociedade digital. Em vez de progredir
gradualmente, passando por fases mediadoras, a pandemia vai obrigar a um salto
brutal, impondo indiscriminadamente a digitalização
de todas as actividades.
Inverter-se-ia a ordem de subordinação: o digital, que estava submetido à
hegemonia de hábitos ligados ao corpo físico (a desterritorialização obrigava
os corpos a deslocarem-se ou a desapropriarem-se de si próprios), tornar-se-ia
dominante, condicionando os outros actos sociais, quando não os suprimia.
O
que se procurava, afinal, era que as gerações pré-pandémicas, com a sua cultura
humanista, os seus hábitos jurídicos, a sua consciência judeo-cristã, não
entravassem mais o livre funcionamento da economia. Só pelo número de mortos
idosos, a pandemia já ajudou a limpar o horizonte. Mas foi sobretudo pela construção
de novas práticas, novos constrangimentos, novos hábitos de prazer a que
obrigou o isolamento social, que as subjectividades digitais poderão florescer
e dominar. Serão subjectividades desterritorializadas, de certo modo, nómadas e
transparentes, mas reterritorializadas
no digital.
A inteligência
artificial terá sem dúvida um papel decisivo neste
processo de sedentarização. As novas subjectividades caracterizar-se-ão pela
submissão e adequação dos corpos às (ou mesmo a sua exclusão das) tarefas da
economia digital, e a permeabilização das mentes às ordens e necessidades da
vida virtual. A nova subjectividade comportará capacidades passivas de
obediência voluntária e capacidades activas de funcionamento programado. Estas
características estavam já presentes na subjectividade digital pré-pandémica,
que descrevemos acima.
O capitalismo, a esperança e
as forças de vida
Vivemos,
neste momento, dois tempos diferentes, em simultâneo: o nosso presente da vida
confinada e o tempo da espera que a pandemia acabe. Nem um nem outro, nem os
dois sobrepostos, ajudam a agir. Alguns pensam que este período de isolamento
deverá ser aproveitado para tomar consciência da necessidade de mudar de vida,
recusando voltar à “normalidade”. A normalidade representa o tecno-capitalismo
e a vida caótica que ele engendra.
Através
das fragilidades e insuficiências das políticas de saúde, esta crise revelou in vivo a desigualdade
que condena tendencialmente os pobres à contaminação e à morte, a indiferença dos sistemas económicos
perante o sofrimento e a doença, ou a falta de solidariedade e de coesão dos
Estados membros da União Europeia. Mas mais profundamente, ela mostrou, segundo
muitos, a futilidade e o vazio da vida sem sentido em que os povos viviam antes
da pandemia. Apareceram então – e continuam a aparecer – certos pensadores,
laicos e religiosos, que afirmam ser esta pandemia a ocasião única para operar
“revoluções” ou “reformas interiores” ou “conversões” radicais que trouxessem
uma mudança radical no modo de vida da humanidade.
A
verdade é que este período de luta pela sobrevivência física não gerou até
agora nenhum sobressalto político ou espiritual, nenhuma tomada de consciência
da necessidade de mudar de vida. Não gerou esperança no futuro. No nosso país, a
unidade nacional foi reforçada apenas no sentimento colectivo de compaixão
pelos mortos e doentes, e pela gratidão
para com os médicos e enfermeiros.
Talvez um pouco, também, pela adesão geral à política do governo.
Não
se conceberam nem novos valores éticos, nem novos programas económicos ou
práticas políticas. E nem a violência brutal do sofrimento e da morte nos
hospitais, escancarada no espaço público mediático, conseguiu varrer as imagens
enganadoras com que nos habituámos a lidar com a realidade. O confinamento não
favoreceu a reflexão e a acção, pelo contrário, suspendeu
o tempo, a vida activa e
o pensamento. O contágio temido, imaginado, alucinado, foi o único
acontecimento que condicionou as emoções e os gestos quotidianos.
Se,
com o confinamento, fugimos à desterritorialização desabrida que vivíamos antes
da pandemia, não nos reterritorializaremos, afinal, senão no digital. Quando se
diz “estamos todos juntos nesta luta” ou “só com o esforço de todos poderemos
vencer o vírus”, este “todos” que compreende sobretudo os confinados constitui,
no fim de contas, uma realidade virtual. Estamos, virtualmente com todos e com
a comunidade, em que participamos à distância, separando-nos dela. É toda a
vida que se virtualiza.
De
resto, o confinamento não foi e não é um tempo de expansão e alegria. Com as
ruas desertas, as cidades silenciosas e o sofrimento gritante dos doentes, a
casa em que nos fechámos não constitui, propriamente, um lugar de entusiasmo e
criação. Nem propício à meditação metafísica, nem à elaboração de grandes
projectos de vida. Afinal, a grande maioria das pessoas quer “voltar à
normalidade” (ou, a uma “nova
normalidade”, como diz Cuomo,
o governador do estado de Nova Iorque).
Ao
ver o desejo premente e angustiado dos políticos de certos países da Europa, de acabar,
neste mês de Abril, com o isolamento obrigatório para pôr a economia a funcionar,
constata-se que se está a preparar tudo para voltar e retomar – por mais
difícil que venha a ser – o estado de coisas anterior. A economia versus a saúde, como se tem dito, ou a vitória
da economia contra a saúde (nos vários sentidos da palavra). O
tecno-capitalismo voltará a funcionar, talvez não como dantes, talvez como
“capitalismo numérico”, construindo rapidamente novas subjectividades digitais.
Não escaparemos ao seu poder de preservação, auto-regeneração e
metamorfose.
Resta-nos
ver mais longe, e prepararmo-nos, com o máximo das nossas forças de vida: esta
crise não é independente da crise ecológica que estamos já a viver e que em
breve atingirá um patamar irreversível. Aí, e porque para ela não haverá
vacina, teremos todos de pôr radicalmente em questão o tecno-capitalismo e os
seus modos de vida, se quisermos ter um (outro) destino na Terra.