nota: dado que foi impossível colocar este texto completo no Sapo, para ser lido por quem se interessasse a partir do post que editei neste blog, deixo aqui a sua versão integral, penitenciando-me pela paciência extrema dos leitores, com a vaga desculpa de que é fim de semana.
A notícia apanhou-me de surpresa. Foi através de um mail de um leitor que fiquei a saber da morte da Maria Rosa Colaço (MRC), uma pedagoga, professora e escritora que marcou gerações de alunos e leitores. A escritora faleceu no passado dia 13 de Outubro e dela, apenas, uma simples nota de rodapé nas televisões. A imprensa, publica pequenas referências e notas biográficas da autora. Uma ignorância e uma tristeza que chocou muitos dos seus antigos alunos. É o caso deste nosso amigo leitor [António Matos Rodrigues] que, triste com a morte da sua antiga professora primária e mais triste ainda pelo cerco de silêncio que se fez à volta dela, decidiu criar um blogue em sua homenagem, com o seu nome, abrindo-o a quem queira testemunhar as suas vivências.
Maria Rosa Colaço publicou vários livros, recebeu alguns prémios, escreveu crónicas jornalísticas e guiões de teatro. Mas o seu trabalho mais conhecido é o livro «A Criança e a Vida», que teve direito a mais de 40 edições, escrito a partir de notas guardadas de redacções dos seus alunos de Cacilhas, nos finais dos anos 50. Desse livro disse Urbano Tavares Rodrigues, ser “um milagre de pedagogia poética”.
Já conhecia o livro havia tempo. O trabalho de Maria Rosa Colaço, professora do ensino primário, era uma lufada de ar fresco no ensino tonto e saloio dos anos 60 e nas escolas tristes e salazarentas da época. Os textos que recolheu, poesias e histórias ferventes e imagéticas, de meninos das ruas e dos bairros de lata da margem sul de Lisboa, eram flores anunciando o Abril futuro. Poderiam ter sido escritos por qualquer um de nós que, entre 1960 e 1969, se sentaram irrequietos nos bancos velhos das escolas, aprendendo as letras com que, hoje, nos ajudam a pensar sobre elas próprias.
Lembro de ter lido o poema da contra-capa do livro e ter pensado no quotidiano do Vitor Barroca Moreira, que o escreveu aos nove anos: “O amor é um pássaro verde, num campo azul, no alto da madrugada”. Lembro ainda de ter visto a minha infância neste poema, de liberdade, de aventura, de protesto. Mas havia outros, muitos mais, cheios de flores, amizades e zangas, como o do Inácio da Silva Cruz, de 10 anos: “O amor é como duas borboletas que estivessem sobre uma rosa, a mais linda de todas do jardim. O amor tem que haver. Se não houvesse amor não havia nada bonito. O amor são duas estrelas a brilhar, a brilhar. A rosa e o sol são o amor. O amor é a poesia. O amor são dois passarinhos a construir a sua casinha. O amor é não haver polícias”.
De Maria Rosa Colaço, disse Casimiro de Brito, poeta louletano: “Educadora, escritora vigilante e aberta: aberta à soterrada voz do seu povo, aos longos silêncios que rodeiam a corrupção, à deslumbrada visitação do sol pelas crianças, à quotidiana construção do amor”. Estas são palavras de poeta, de gente que nega a morte, não negando o poema ou as palavras com que se fazem os Homens.
É como a viagem à lua do Manuel Miranda, de 8 anos: “Despedia-me do meu pai e da minha mãe. Preparava as malas e ia para a lua. Quando lá chegasse falava com Deus e os anjos. Ficava lá com os meus companheiros e nunca mais voltava porque encontrava os anjos a cantar e as estrelas ali mesmo ao pé. Porque lá não havia guerra e lá estava muito sossegadinho e não havia misérias, nem morria ninguém”. Assim, o Manuel viajou à lua, antes de outros, como o principezinho da história.
Maria Rosa Colaço diz-nos que estas crianças “não eram génios, nem poetas, nem meninos prodígios. Eram filhos de pescadores, de varinas, de ladrões de coisas...essenciais ao dia-a-dia. Moravam em casas com buracos e dormiam nos barcos, no vão das portas, nos degraus da doca, em qualquer sítio” [ver caixa “Poesia de «A Criança e a Vida»”]
Esta missão de quase evangelizar a criança, a partir da descoberta e da criação poética, permitiu à escritora algarvia Lídia Jorge referir-se-lhe como se estivesse a “tentar atingir a alma do mundo”.
Comprei o livro em Coimbra, em Novembro de 1992 – depois de o ter lido nos finais de 70 -, para voltar a sentir o eco fundo dos seus apelos de criança. E agora, ao pegar nele e olhar as datas dos poemas, posso dizer mais uma coisa: a sua autora, Maria Rosa Colaço, enquanto ensinava a olhar a vida na velha escola de Cacilhas, ainda escrevia para «A Voz de Loulé». São conhecidos os seus 20 anos de crónicas para o jornal «A Capital», mas «A Voz de Loulé» deve ter sido o primeiro jornal em que publicou. Na altura tinha 21 anos, quando surge em 1 de Janeiro de 1957 no nº 6 do “Prisma de Cristal”, página literária de «A Voz de Loulé», coordenada por Casimiro de Brito. Nesse número publica um texto intitulado “Remoendo”, no qual questiona o papel da religião no mundo. A sua presença torna-se regular, publicando em 13 dos 26 números do “Prisma”, publicando textos de reflexão filosófica sobre política, educação e poesia, fazendo análise e crítica literária a vários poetas, realizando entrevistas, etc. No nº 16, de 7 de Julho de 1957, publica um poema, “Inconformidade”, um dos poucos conhecidos de sua autoria [ver caixa “Maria Rosa Colaço no “Prisma de Cristal”].
Maria Rosa Colaço foi uma das colaboradoras mais activas desta página literária e uma das mais estimulantes presenças do chamado Movimento Prisma (ver o meu artigo “O Movimento Prisma em Loule” em [a cultura], «A Voz de Loulé», do passado 15 de Outubro, páginas 15-16).
Na dedicatória que redigiu num dos exemplares de «A Criança e a Vida», disse: “Com pombas e sonho, escrevi (orientei) esta antologia para que, ao menos pela voz clara da infância, os adultos se apercebessem dos abismos e da noite que contorna o mundo. Porque, como F. Pessoa, também digo: "O melhor de tudo, são as crianças"”.
É também ela que diz no prefácio do mesmo livro: “Companheira do sol e das raízes, cheguei à grande cidade”. Agora que partiu para outra grande cidade, nós acompanhamo-la! Na divulgação do seu nome e da pedagogia comprometida e libertária que desenvolveu.
Notas:
1. O “Prisma de Cristal” está inserto no jornal «A Voz de Loulé», entre os números 94, de 16 de Outubro de 1956 e 175, de 15 de Fevereiro de 1959 e pode ser consultado no Arquivo Histórico Municipal de Loulé.
2. Na Biblioteca Municipal de Loulé estão disponíveis várias das obras de Maria Rosa Colaço.
Maria Rosa Colaço publicou vários livros, recebeu alguns prémios, escreveu crónicas jornalísticas e guiões de teatro. Mas o seu trabalho mais conhecido é o livro «A Criança e a Vida», que teve direito a mais de 40 edições, escrito a partir de notas guardadas de redacções dos seus alunos de Cacilhas, nos finais dos anos 50. Desse livro disse Urbano Tavares Rodrigues, ser “um milagre de pedagogia poética”.
Já conhecia o livro havia tempo. O trabalho de Maria Rosa Colaço, professora do ensino primário, era uma lufada de ar fresco no ensino tonto e saloio dos anos 60 e nas escolas tristes e salazarentas da época. Os textos que recolheu, poesias e histórias ferventes e imagéticas, de meninos das ruas e dos bairros de lata da margem sul de Lisboa, eram flores anunciando o Abril futuro. Poderiam ter sido escritos por qualquer um de nós que, entre 1960 e 1969, se sentaram irrequietos nos bancos velhos das escolas, aprendendo as letras com que, hoje, nos ajudam a pensar sobre elas próprias.
Lembro de ter lido o poema da contra-capa do livro e ter pensado no quotidiano do Vitor Barroca Moreira, que o escreveu aos nove anos: “O amor é um pássaro verde, num campo azul, no alto da madrugada”. Lembro ainda de ter visto a minha infância neste poema, de liberdade, de aventura, de protesto. Mas havia outros, muitos mais, cheios de flores, amizades e zangas, como o do Inácio da Silva Cruz, de 10 anos: “O amor é como duas borboletas que estivessem sobre uma rosa, a mais linda de todas do jardim. O amor tem que haver. Se não houvesse amor não havia nada bonito. O amor são duas estrelas a brilhar, a brilhar. A rosa e o sol são o amor. O amor é a poesia. O amor são dois passarinhos a construir a sua casinha. O amor é não haver polícias”.
De Maria Rosa Colaço, disse Casimiro de Brito, poeta louletano: “Educadora, escritora vigilante e aberta: aberta à soterrada voz do seu povo, aos longos silêncios que rodeiam a corrupção, à deslumbrada visitação do sol pelas crianças, à quotidiana construção do amor”. Estas são palavras de poeta, de gente que nega a morte, não negando o poema ou as palavras com que se fazem os Homens.
É como a viagem à lua do Manuel Miranda, de 8 anos: “Despedia-me do meu pai e da minha mãe. Preparava as malas e ia para a lua. Quando lá chegasse falava com Deus e os anjos. Ficava lá com os meus companheiros e nunca mais voltava porque encontrava os anjos a cantar e as estrelas ali mesmo ao pé. Porque lá não havia guerra e lá estava muito sossegadinho e não havia misérias, nem morria ninguém”. Assim, o Manuel viajou à lua, antes de outros, como o principezinho da história.
Maria Rosa Colaço diz-nos que estas crianças “não eram génios, nem poetas, nem meninos prodígios. Eram filhos de pescadores, de varinas, de ladrões de coisas...essenciais ao dia-a-dia. Moravam em casas com buracos e dormiam nos barcos, no vão das portas, nos degraus da doca, em qualquer sítio” [ver caixa “Poesia de «A Criança e a Vida»”]
Esta missão de quase evangelizar a criança, a partir da descoberta e da criação poética, permitiu à escritora algarvia Lídia Jorge referir-se-lhe como se estivesse a “tentar atingir a alma do mundo”.
Comprei o livro em Coimbra, em Novembro de 1992 – depois de o ter lido nos finais de 70 -, para voltar a sentir o eco fundo dos seus apelos de criança. E agora, ao pegar nele e olhar as datas dos poemas, posso dizer mais uma coisa: a sua autora, Maria Rosa Colaço, enquanto ensinava a olhar a vida na velha escola de Cacilhas, ainda escrevia para «A Voz de Loulé». São conhecidos os seus 20 anos de crónicas para o jornal «A Capital», mas «A Voz de Loulé» deve ter sido o primeiro jornal em que publicou. Na altura tinha 21 anos, quando surge em 1 de Janeiro de 1957 no nº 6 do “Prisma de Cristal”, página literária de «A Voz de Loulé», coordenada por Casimiro de Brito. Nesse número publica um texto intitulado “Remoendo”, no qual questiona o papel da religião no mundo. A sua presença torna-se regular, publicando em 13 dos 26 números do “Prisma”, publicando textos de reflexão filosófica sobre política, educação e poesia, fazendo análise e crítica literária a vários poetas, realizando entrevistas, etc. No nº 16, de 7 de Julho de 1957, publica um poema, “Inconformidade”, um dos poucos conhecidos de sua autoria [ver caixa “Maria Rosa Colaço no “Prisma de Cristal”].
Maria Rosa Colaço foi uma das colaboradoras mais activas desta página literária e uma das mais estimulantes presenças do chamado Movimento Prisma (ver o meu artigo “O Movimento Prisma em Loule” em [a cultura], «A Voz de Loulé», do passado 15 de Outubro, páginas 15-16).
Na dedicatória que redigiu num dos exemplares de «A Criança e a Vida», disse: “Com pombas e sonho, escrevi (orientei) esta antologia para que, ao menos pela voz clara da infância, os adultos se apercebessem dos abismos e da noite que contorna o mundo. Porque, como F. Pessoa, também digo: "O melhor de tudo, são as crianças"”.
É também ela que diz no prefácio do mesmo livro: “Companheira do sol e das raízes, cheguei à grande cidade”. Agora que partiu para outra grande cidade, nós acompanhamo-la! Na divulgação do seu nome e da pedagogia comprometida e libertária que desenvolveu.
Notas:
1. O “Prisma de Cristal” está inserto no jornal «A Voz de Loulé», entre os números 94, de 16 de Outubro de 1956 e 175, de 15 de Fevereiro de 1959 e pode ser consultado no Arquivo Histórico Municipal de Loulé.
2. Na Biblioteca Municipal de Loulé estão disponíveis várias das obras de Maria Rosa Colaço.
[texto publicado em «A Voz de Loulé» de 1 de Novembro]