sábado, novembro 13, 2004

Lembrando Maria Rosa Colaço

nota: dado que foi impossível colocar este texto completo no Sapo, para ser lido por quem se interessasse a partir do post que editei neste blog, deixo aqui a sua versão integral, penitenciando-me pela paciência extrema dos leitores, com a vaga desculpa de que é fim de semana.
A notícia apanhou-me de surpresa. Foi através de um mail de um leitor que fiquei a saber da morte da Maria Rosa Colaço (MRC), uma pedagoga, professora e escritora que marcou gerações de alunos e leitores. A escritora faleceu no passado dia 13 de Outubro e dela, apenas, uma simples nota de rodapé nas televisões. A imprensa, publica pequenas referências e notas biográficas da autora. Uma ignorância e uma tristeza que chocou muitos dos seus antigos alunos. É o caso deste nosso amigo leitor [António Matos Rodrigues] que, triste com a morte da sua antiga professora primária e mais triste ainda pelo cerco de silêncio que se fez à volta dela, decidiu criar um blogue em sua homenagem, com o seu nome, abrindo-o a quem queira testemunhar as suas vivências.
Maria Rosa Colaço publicou vários livros, recebeu alguns prémios, escreveu crónicas jornalísticas e guiões de teatro. Mas o seu trabalho mais conhecido é o livro «A Criança e a Vida», que teve direito a mais de 40 edições, escrito a partir de notas guardadas de redacções dos seus alunos de Cacilhas, nos finais dos anos 50. Desse livro disse Urbano Tavares Rodrigues, ser “um milagre de pedagogia poética”.
Já conhecia o livro havia tempo. O trabalho de Maria Rosa Colaço, professora do ensino primário, era uma lufada de ar fresco no ensino tonto e saloio dos anos 60 e nas escolas tristes e salazarentas da época. Os textos que recolheu, poesias e histórias ferventes e imagéticas, de meninos das ruas e dos bairros de lata da margem sul de Lisboa, eram flores anunciando o Abril futuro. Poderiam ter sido escritos por qualquer um de nós que, entre 1960 e 1969, se sentaram irrequietos nos bancos velhos das escolas, aprendendo as letras com que, hoje, nos ajudam a pensar sobre elas próprias.
Lembro de ter lido o poema da contra-capa do livro e ter pensado no quotidiano do Vitor Barroca Moreira, que o escreveu aos nove anos: “O amor é um pássaro verde, num campo azul, no alto da madrugada”. Lembro ainda de ter visto a minha infância neste poema, de liberdade, de aventura, de protesto. Mas havia outros, muitos mais, cheios de flores, amizades e zangas, como o do Inácio da Silva Cruz, de 10 anos: “O amor é como duas borboletas que estivessem sobre uma rosa, a mais linda de todas do jardim. O amor tem que haver. Se não houvesse amor não havia nada bonito. O amor são duas estrelas a brilhar, a brilhar. A rosa e o sol são o amor. O amor é a poesia. O amor são dois passarinhos a construir a sua casinha. O amor é não haver polícias”.
De Maria Rosa Colaço, disse Casimiro de Brito, poeta louletano: “Educadora, escritora vigilante e aberta: aberta à soterrada voz do seu povo, aos longos silêncios que rodeiam a corrupção, à deslumbrada visitação do sol pelas crianças, à quotidiana construção do amor”. Estas são palavras de poeta, de gente que nega a morte, não negando o poema ou as palavras com que se fazem os Homens.
É como a viagem à lua do Manuel Miranda, de 8 anos: “Despedia-me do meu pai e da minha mãe. Preparava as malas e ia para a lua. Quando lá chegasse falava com Deus e os anjos. Ficava lá com os meus companheiros e nunca mais voltava porque encontrava os anjos a cantar e as estrelas ali mesmo ao pé. Porque lá não havia guerra e lá estava muito sossegadinho e não havia misérias, nem morria ninguém”. Assim, o Manuel viajou à lua, antes de outros, como o principezinho da história.
Maria Rosa Colaço diz-nos que estas crianças “não eram génios, nem poetas, nem meninos prodígios. Eram filhos de pescadores, de varinas, de ladrões de coisas...essenciais ao dia-a-dia. Moravam em casas com buracos e dormiam nos barcos, no vão das portas, nos degraus da doca, em qualquer sítio” [ver caixa “Poesia de «A Criança e a Vida»”]
Esta missão de quase evangelizar a criança, a partir da descoberta e da criação poética, permitiu à escritora algarvia Lídia Jorge referir-se-lhe como se estivesse a “tentar atingir a alma do mundo”.
Comprei o livro em Coimbra, em Novembro de 1992 – depois de o ter lido nos finais de 70 -, para voltar a sentir o eco fundo dos seus apelos de criança. E agora, ao pegar nele e olhar as datas dos poemas, posso dizer mais uma coisa: a sua autora, Maria Rosa Colaço, enquanto ensinava a olhar a vida na velha escola de Cacilhas, ainda escrevia para «A Voz de Loulé». São conhecidos os seus 20 anos de crónicas para o jornal «A Capital», mas «A Voz de Loulé» deve ter sido o primeiro jornal em que publicou. Na altura tinha 21 anos, quando surge em 1 de Janeiro de 1957 no nº 6 do “Prisma de Cristal”, página literária de «A Voz de Loulé», coordenada por Casimiro de Brito. Nesse número publica um texto intitulado “Remoendo”, no qual questiona o papel da religião no mundo. A sua presença torna-se regular, publicando em 13 dos 26 números do “Prisma”, publicando textos de reflexão filosófica sobre política, educação e poesia, fazendo análise e crítica literária a vários poetas, realizando entrevistas, etc. No nº 16, de 7 de Julho de 1957, publica um poema, “Inconformidade”, um dos poucos conhecidos de sua autoria [ver caixa “Maria Rosa Colaço no “Prisma de Cristal”].
Maria Rosa Colaço foi uma das colaboradoras mais activas desta página literária e uma das mais estimulantes presenças do chamado Movimento Prisma (ver o meu artigo “O Movimento Prisma em Loule” em [a cultura], «A Voz de Loulé», do passado 15 de Outubro, páginas 15-16).
Na dedicatória que redigiu num dos exemplares de «A Criança e a Vida», disse: “Com pombas e sonho, escrevi (orientei) esta antologia para que, ao menos pela voz clara da infância, os adultos se apercebessem dos abismos e da noite que contorna o mundo. Porque, como F. Pessoa, também digo: "O melhor de tudo, são as crianças"”.
É também ela que diz no prefácio do mesmo livro: “Companheira do sol e das raízes, cheguei à grande cidade”. Agora que partiu para outra grande cidade, nós acompanhamo-la! Na divulgação do seu nome e da pedagogia comprometida e libertária que desenvolveu.

Notas:
1. O “Prisma de Cristal” está inserto no jornal «A Voz de Loulé», entre os números 94, de 16 de Outubro de 1956 e 175, de 15 de Fevereiro de 1959 e pode ser consultado no Arquivo Histórico Municipal de Loulé.
2. Na Biblioteca Municipal de Loulé estão disponíveis várias das obras de Maria Rosa Colaço.
[texto publicado em «A Voz de Loulé» de 1 de Novembro]