sábado, julho 16, 2005

"Contrasenso" convida

A coluna “Contrasenso” da Voz de Loulé de ontem, é da autoria da minha convidada Maria Amália Cabrita. Aconselho vivamente a sua leitura, dado tratar-se de uma análise extremamente interessante sobre a problemática do capitalismo na sua versão consumista. A sua retórica, mostra ainda um cariz neo-marxista bem patente na linguagem, na desmontagem e no título. É uma boa leitura para o fim de semana que se segue. Disponibilizo, aqui, o texto na íntegra:
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Um espectro sobre a Europa

Paira um novo espectro sobre a Europa mas para já não é o do comunismo. É o do algarismo. Podia-se dizer de forma mais elegante e apontá-lo como o fantasma do número mas talvez ele não mereça tanto.
O número é um conceito intelectual, com uma longa tradição platónica e aristotélica atrás de si, ao passo que este espectro é uma criação de merceeiros. O algarismo domina agora do Atlântico aos Urais. Perante ele caíram para sempre todas as fronteiras europeias, de tal modo que não há no momento ministério do interior que as possa repor, nem que seja por meia dúzia de dias de futebol.
Os europeus tinham começado a sucumbir perante o espectro já há muito tempo. Por exemplo, aquele que foi provavelmente a grande criação estética da modernidade, o Romantismo, já se definia pela exaltação da qualidade e pela recusa da quantidade. Simplesmente, enquanto o capitalismo tinha uma missão criativa e prosseguia na sua obra de desencantamento do mundo, a sua sombra não cobria tudo. Na altura dos românticos parecia ainda possível comparar qualidades (a natureza independente, os lugares não europeizados, o passado pré-capitalista mitificado, etc.) contra quantidades (o dinheiro, a mercadoria, o preço). Fazia-se a exaltação do valor de uso contra o valor de troca e essa operação era possível porque as duas realidades coexistiam, embora conflituosamente, para as “almas sensíveis”.
Deixou de haver “almas sensíveis” dessas, quando deixou de haver alguma coisa para comparar. Com a potência de uma bomba de neutrões sobre todos os modos de produção anteriores, o capitalismo varreu-os e decretou que passava a haver apenas quantidades, sob a forma de unidades contabilísticas. Como permaneceram algumas palavras consagradas e o materialismo filosófico continua a ter muito má reputação, continuou a dizer-se que o mundo tem uma alma, mas agora pouca gente não saberá que ela de facto é numérica. Sendo assim, as palavras tinham de ser recicladas. Se tudo o que muda é uma alteração quantitativa, o fundo lexical deverá ser retirado da ciência do nosso tempo, a contabilidade. A iniciativa chama-se agora “empresa”, a introspecção é um “balanço”, as vitórias são “benefícios” e as derrotas, “perdas”. Agir no quotidiano é “gerir” e quando se deve arriscar ou ceder, evidentemente, que se“investe”. Como a palavra “valor” – aparentemente impoluta perante o novo Código da Substância – ainda estava, vendo melhor, demasiado associada ao mundo da qualidade, considerou-se mais livre de efeitos secundários trocá-la por miúdos e falar em “mais-valia” e “lucro” sempre que alguma coisa corre bem. É claro que gente pouco recomendável como os metafísicos, os ricardianos e – horresco referens – os marxistas as tinham consagrado noutro contexto mas quem “investe” hoje em dia nessas leituras? O verbo socialmente certo é, evidentemente, “valorizar” que, como é obvio, não significa agora dar valor mas reproduzir com valor acrescentado.
O hábito de pensar com palavras talvez seja um dos próximos a desaparecer. De facto, o totem do capitalismo tardio obriga-o a fazer economias em tudo, o que significa que há palavras a mais. A sociedade não precisa apenas de reciclar as antigas, pode passar sem muitas delas. Bom, o que o capitalismo precisava era de facto de uma nova linguagem, formada por zeros e uns, como os circuitos electrónicos. Ah, mas isso custa demasiado para já, é coisa para o futuro próximo. Vale uma “aposta”?
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[Maria Amália Cabrita]