quinta-feira, março 10, 2005

Eugénio de Andrade II

(conclusão de um post anterior)
Eugénio de Andrade fez, há dois meses, 82 anos e quando nasceu chamou-se José Fontinhas, nome que nunca o acompanhou na vida literária. Só em "Narciso", pequeno volume de poemas estimulado por António Botto, usa o seu verdadeiro nome, que abandona em "Adolescente" o seu primeiro livro de poemas, editado em 1942. Depois daí foi-nos enchendo de palavras simples e belas em poemas curtos, onde quem manda é a natureza: As Mãos e os Frutos (1948), Os Amantes sem Dinheiro (1950), As Palavras Interditas (1951), Até Amanhã (1956), Coração do Dia (1958), Mar de Setembro (1961), Ostinato Rigore (1964), Antologia Breve (1972), Véspera de Água (1973), Limiar dos Pássaros (1976), Memória de Outro Rio (1978), Rosto Precário (1979), Matéria Solar (1980), Branco no Branco (1984), Aquela Nuvem e Outras (1986), Vertentes do Olhar (1987), O Outro Nome da Terra (1988), etc. Com este último livro ganha, em 1989, o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. Nesse mesmo ano, recebeu o prémio Jean Malrieu para o melhor livro de poesia estrangeira publicado em França com a obra Blanc sur Blanc.
Apesar de desenvolver actividade profissional como um simples funcionário público, como gosta de referir, Eugénio de Andrade desenvolveu outras actividades complementares da poesia, tendo sido tradutor - de García Lorca por exemplo - e ainda editor. Em 1991, um grupo de amigos cria a Fundação Eugénio de Andrade, talvez a sua obra mais sistemática.
Do poeta diz, Maria Alzira Seixo, que a sua poesia é "muito sensual e literária, plástica e musical", atributos visíveis em qualquer um dos seus poemas. Como neste:

Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Serafim Ferreira fala, por outro lado "na clara solaridade vocabular que em todos os seus poemas se patenteia com exuberância". Pois é. Os poemas de Eugénio adivinham o sol por detrás das nuvens de hoje, enchem-nos os olhos e a alma de luz, uma luz tão certeira e fixa como o seu desejo sobre o mundo.
Também eu tenho o meu eleito. O poema que me serviu de alimento intelectual, relacional e de transgressão total. Do livro "O Peso da Sombra":

Inventarei o dia onde contigo
e o outono corra pelas ruas.
A luz que pisamos é tão perfeita
que não pode morrer, como não morre
o brilho do olhar que te viu despir.

Helder F. Raimundo

[a publicar em «A Voz de Loulé», de 15 de Março]