Katie Melua, Picture, 2007.
Não é preciso explicação pois não?
O jornal conta com excelentes colunistas e comentadores, para além de se preocupar com áreas sociais que, em geral, os periódicos não ligam. Mesmo falando de Espanha, que conta com um dos melhores diários do mundo, o El País, como todos sabem.
A morte de Benazir Bhutto desencadeou uma onda de protesto e de violência no Paquistão e um carinho por todo o mundo democrático. Mas convém não alardear muito, pois o Paquistão é um país culturalmente muito complexo e politicamente muito incerto. O ponto de vista ocidental cai, com facilidade, no etnocentrismo de análise e não percebe vários aspectos:
1. Tal como os restantes partidos, o PPP (Partido do Povo do Paquistão) é pertença da família Bhutto há muito tempo, e funciona com sucessões dinásticas; veja-se como a presidência foi entregue ao filho primogénito de Benazir (19 anos) que, sendo jovem e indo estudar para o Ocidente, deixa a gestão corrente nas mãos do pai, há tempo afastado da mãe.
3. Para conhecer melhor o assunto, entre muitas outras possibilidades, ver o post de Miguel Portas, A incomparável assassinada.
4. Indispensável, é o ensaio de Christopher Hitchens, colunista da revista Vanity Fair e da Slate Magazine. Nesta última publicou uma análise muito conhecedora e acutilante sobre o caso, transcrita no El País de ontem. O artigo intitula-se “Una hija del destino”. Deixo um extracto, traduzido por mim:
Nem o mais severo crítico de Benazir Bhutto seria capaz de negar que possuía um valor físico extraordinário. (...) Resulta grotesco, desde logo, que o assassinato se tenha produzido em Rawalpindi, a cidade onde vive entrincheirada a classe militar dirigente do país. (...) Mas custa fazer uma análise cui bono cuja conclusão seja que o general Perez Musharraf, o presidente actual, seja o beneficiário de sua morte. A culpa é provavelmente do eixo Al Qaeda/Talibãs, talvez com alguma ajuda de seus numerosos simpatizantes encobertos e não tão encobertos no organismo inter-serviços das forças de inteligência paquistanesas.
O consumismo cultural tem destas coisas. São conhecidas as imagens simbólicas dos magotes de turistas japoneses, deslocando-se sem pisar o chão (são tantos e tão apertados que a sua deslocação é feita pelo suporte dos corpos dos mais altos), nas salas do Museu do Louvre, em Paris.
Oiçam esta agora: o Museu de Hamburgo fechou as suas portas depois de ter verificado que a sua exposição “O Poder da Morte” era composta por guerreiros Xian de terracota falsificados, e não obras construídas dois séculos antes de cristo. Os 10.000 visitantes da exposição podem receber o dinheiro das entradas de volta, por terem visto oito guerreiros de terracota, com dimensões, materiais e técnicas da altura da dinastia Qin. Só que não são os originais. E então, qual é o problema da contrafacção cultural?
Uma das conclusões do estudo abaixo referido, é a de que cada vez mais se lê ao ritmo e de acordo com a metodologia do zapping. Sobretudo as crianças e os adolescentes, gente criada ao ritmo dos jogos de vídeo e da leitura
O El País traz um estudo indicativo do índice de leitura infantil que interessa comentar. Tomando como base o índice 300 e considerando a média em 500, vê-se o posicionamento dos países acima e abaixo da média. Lá por cima estão Rússia, Hong-Kong, Canadá, Singapura, etc. Acima da média, ainda aparecem Espanha (513), França (522), Dinamarca (546) e por aí. Abaixo da média, Noruega (498), Irão (428), Indonésia (425), Marrocos (323) e por aí. Portugal não aparece, até ao 45º lugar e, como não tenho tempo, nem o vou procurar.
Aos poucos, Sarkozy vai levando a água ao seu moinho. Um moinho sem velas há já muito tempo. Não só dinamizou a chamada União Euromediterrânica, que nasceu em Barcelona em 1995 e nunca mais andou, como propôs um Conselho de Sábios para definir os fins e os limites da União Europeia. Quanto à primeira, o que o presidente francês propõe é uma ligação entre os países europeus com fronteiras marítimas no Mediterrâneo e não um projecto integrado nos programas da UE, como querem Espanha e Itália, os outros dois países dinamizadores. No Conselho de Sábios aceitou a presidência do ex-primeiro-ministro de Espanha, Felipe González.
Como se vê, o objectivo de Sarkozy não é andar a dormir nas conferências internacionais, mas estar de olho aberto contra a liderança alemã. Nem que seja através do namoro com os restantes vizinhos próximos.
UM CHALÉ NA PRAIA DA ROCHA
O campeonato do mundo de futebol, em Inglaterra, já lá ia há muito. Todos se lembravam do jogo contra a Coreia, que Portugal tinha ganho por cinco a três, depois de estar a perder por três bolas a zero. E do Eusébio, que marcava os golos e imediatamente retirava a bola do fundo das redes. A televisão era a preto e branco nessa altura. E o país também, muito mais preto do que branco. Para eles, que eram todos jovens, brancura, só mesmo no Natal: nas geadas da manhã, quando acordavam, nas neves de que ouviam falar aos seus amigos serrenhos de Monchique e nos algodões alvos, das decorações do presépio. Sim, neste tempo o Pai Natal não existia, ainda não tinha sido inventado pelo comércio das bugigangas dos centros comerciais. Só o Menino Jesus tinha o direito de vaguear pelos sonhos dos meninos e, esse, só descia pelas chaminés noite dentro, na madrugada de 25 de Dezembro. Era pouco o que deixava. Um copo de plástico e uma laranja foi o que o Zezé ganhou, nesse ano. Às vezes, lá deixava uns bombons da Regina, umas peúgas de lã ou um prato de filhós de batata-doce e chocolate.
Nessa noite, saíram em grupo, do bairro industrial sujo e frio, alagado em água salgada e marismas, onde viviam desde que nasceram, ali perto da fábrica de conservas. Em bando, e esfriados, percorreram os poucos quilómetros que os separavam da Praia da Rocha, paraíso da alta burguesia da cidade.
Estavam agasalhados com blusas de lã, refeitas de outras velhas blusas já usadas e casacos coçados dos pais, que lhes cobriam as pernas. Entre as poucas ruas da urbe, tentavam orientar-se timidamente, junto dos chalés de telha preta e janelas de veneziana. A algumas casas era difícil aceder, pois estavam rodeadas de gradeamentos de ferro encimados por espigões, ou guardadas por cães esquisitos, desenhados nas fronteiras das entradas.
Nunca nenhum deles tinha feito semelhante coisa. Não tinham experiência alguma, mas a leveza do prato de caldo verde no estômago, a curiosidade e o advento de uma adolescência presumivelmente escura e sinuosa, levou-os a decidir. Escolheram uma casa de dois andares e pátio de fácil acesso. A porta era de cor castanha e de aspecto pesado e tinha no centro um batente circular, de ferro. Olharam à volta, a noite de Janeiro estava escura, não se via vivalma e, sem barulho, avançaram todos para a porta. A calma era convidativa e o breu da noite ofuscava deliberadamente os seus rostos. De repente, no silêncio ressonante da noite, surge uma melopeia sentida e tristonha, como que vinda do além:
É de grande merecimento
Por ser a noite primeira
É que Deus passou tormento.
Deixe-se estar que está bem
Mande-nos dar a esmola
Por essa filha que aí tem.
Os miúdos desconheciam a mensagem do arranjo de Natal na porta. No seu bairro, nunca tal tinham visto. Até que um deles chamou a atenção para uma eventual morte. E pensando que tinha morrido alguém em noite tão adventícia, fugiram amedrontados, para bem longe da casa assombrada. Refugiaram-se o resto da noite no seu bairro. Até um dia, em que um lençol de areia cobriu o antigo espaço das casas, transformando o bairro em porto comercial da cidade.
Hoje, esta história deve ser uma das suas boas memórias desses tempos de infância.
Dezembro 1991/Dezembro 2007
Helder F. Raimundo.
Até ao final do ano irei destacar aqui algumas escolhas do ano de 2007: blogues, músicas/cantores, revistas, media, tecnologia, literatura, etc, que marcaram o ano com o seu rasgo, aparecendo ou desaparecendo ao meu olhar. Quem quiser contribuir com novidades pode escrever para: comunitario arroba sapo ponto pt
Há cerca de duas semanas, o meu filho mais novo fracturou um cotovelo e foi operado nessa mesma noite. De volta em volta, no Hospital de Faro, utilizou o sistema de cirurgia ambulatória, com recobro e restabelecimento em casa junto de quem o ama, e portanto, longe da bacteriologia infecciosa dos corredores hospitalares. Uma medida que se elogia, uma ideia do médico Castro Alves (Entidade Reguladora da Saúde) que a bebeu no Cook County Chicago. Esse mesmo, aquele no qual se filma ER (“Serviço de Urgência”). Quem havia de dizer.
Depois de muitas hesitações – começa a ser uma atitude intrínseca – o Ministério da Cultura de Portugal adquiriu a colecção fabulosa de gravações de fado, ao coleccionador inglês Bruce Bastin. Uma vergonha se tal não acontecesse, pois são mais de oito mil fonogramas. O facto de o advogado do coleccionador ser José Alberto Sardinha (um amigo e colega das recolhas etnomusicológicas) deve ter pesado na decisão da ministra. Para bem do espólio musical, espero bem que sim, pois sempre são 1,1 milhões de euros.
Parece que mais de 80% dos restaurantes e cafés – para além dos hotéis – vão proibir o fumo no seu território. Está na altura de respirar um ar menos poluído quando comemos ou simplesmente bebemos um café. A partir de 1 de Janeiro começa a denúncia popular da patrulha ecológica. Eu alinho. Detesto fumar os cigarros dos outros. Ali à direita já está o meu manifesto.
J.L. Saldanha Sanches, no caderno de economia do Expresso, 15 Dezembro 2007:
As aparências iludem: as máfias a trovejarem violência e morte são plantas muito delicadas; só conseguem crescer em certos climas. Depois de crescerem ganham raízes e tornam-se mais fortes. Mas serão sempre plantas de estufa que não suportam o frio ou os ventos fortes (...)
Em viagem até à fronteira espanhola, hoje, devo ter visto cerca de uma dezena de carros parados na berma da Via do Infante. Pelo menos três estavam acidentados. Mesmo assim, e apesar da chuva intensa e neblina cerrada, muitos condutores circulavam a mais de 120 à hora, alguns deles de luzes apagadas, com medo de gastar energia, certo? Bem dizia José Megre há vários anos: o problema da sinistralidade rodoviária não é causado pelo mau estado das estradas ou pela ausência de sinalização. Nem nessa altura nem muito menos agora. O problema, qual é então? A azelhice dos condutores. Essa é a verdade. Grande parte das cartas de condução saíram na farinha Amparo como sabemos e, por isso, se saúdam as novas medidas a implementar no próximo ano. Entre outras coisas, uma carta com pontos, que se retiram à medida que se multiplicam infracções, até à derrota final. E era bom que, no vidro dianteiro, as asneiras destes condutores estivessem bem assinaladas, através de cores apropriadas. Com a vida dos outros não se brinca.
As crónicas de Luís Fernando Veríssimo, no Expresso, são obrigatórias. Para além de um humor inteligente o cronista é um excelente contador de histórias, quer sejam de ficção quer sejam de realidades bem presentes. Da última – que aborda os gestos relacionados com o acto de telefonar – respigo este excerto:
Outro gesto datado é girar o dedo no ar. Do tempo em que os telefones tinham discos, lembra? Você introduzia o dedo no buraco correspondente ao número desejado e rodava o disco. Fazer isso em forma de mímica deixava claro para a pessoa distante que você se referia ao telefone (…) a não ser que você a estivesse convidando para dançar. (…) Já existe toda uma geração que nasceu, cresceu e se tornou adulta na era pós-disco e para a qual o dedo girando no ar também perdeu qualquer sentido.
Há tempos que queria falar da revista minguante. Pequena, como convém, a albergar pequenos contos (microcontos) de várias paragens, já do Brasil e de Espanha, alfobres das pequenas histórias e de famosos cultores do género. Lembram-se de Cortázar?
Entre outros, por detrás do trabalho da Minguante, está o meu amigo Luís Ene, incansável a respirar texto por todos os poros. Gosto sempre de o ler e sei o trabalho que dá manter uma revista on-line com uma qualidade mínima, aberta a participações várias.
O acordo ortográfico entre Portugal e Brasil volta a atacar. E bem. Depois das palhaçadas com a língua que muitos dos nossos escritores fizeram (lembro textos de Baptista Bastos) agora, Graça Moura mantém a defesa da honra, explicando que quem ganha com isso é a indústria do livro brasileiro. And so what? Não estamos todos fartos de desperdiçar letrinhas que bem poderiam ir parar a uma bela sopa? Ação pois, na direção de um acordo moderno.
Entretanto, enquanto alguns portugueses defenderem Eça como o maior escritor da língua portuguesa e “Os Maias” como a melhor obra da língua, estaremos mal. Peguem lá n’ “As Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis e vejam se aprendem.
O cartoonista Luís Afonso, no Público, propõe um olhar pós-colonial sobre o tema:
Ouviu-os há uns dias, de manhã, no programa do João Adelino Faria no Rádio Clube Português. Deram uma entrevista a defender a música portuguesa de antanho: Max, Amália, etc. Os Donna Maria são três: Miguel Majer e Ricardo Santos, nos instrumentos; e Marisa Pinto, uma voz feminina a lembrar alguns efeitos vocais dos primeiros temas dos Entre Aspas. O grupo respira muita fusão por ali, cheio das boas influências da pop portuguesa dos anos 90. Hoje ouviu-os, de novo, no programa Nuno & Nando (Nuno Markl e Fernando Alvim) nas manhãs de sábado, na Antena 3 e tanto que me soou a Amélia Muge. Mas é bom, bastante bom. Um dos clips do álbum de estreia, “Música para ser Humano”, tem realmente um design cinematográfico retro, que se elogia. Vamos vê-lo e comprovar o que digo:
Hoje, este blogue aderiu à ideia da redução de energia, na luminosidade do écrã dos monitores que o lêem e na redução progressiva da emissão de CO2, por via da sua navegação. Como já tinha feito em tempos com outro blogue, este passa a ter fundo negro. A alteração de template obrigou-me a actualizar na nova versão, o que provocou algumas decàlages no side bar. Em breve actualizarei os elementos que já tinha alterado em tempos.
Entretanto aproveite para responder à sondagem, ali ao lado, sobre a Emissão de Co2 para a atmosfera.
A Voz de Loulé entre o papel e a rede
A Voz de Loulé faz hoje 55 anos. O que dizer de um jornal que atravessa a 2ª metade do século XX e já se espraia por um novo? Bom, em primeiro lugar reconhecer que é muito tempo e motivo de satisfação. Devo reconhecer que, ao escrever estas linhas, eu também estou a escrever sobre mim, sobre o meu tempo, pois as nossas idades andam bem mais próximas do que se pensa. É o momento de endereçar os parabéns, a altura em que toda a gente diz que a Voz de Loulé é um marco da terra, um emblema do concelho. Pois é. Mas o jornal é também um daqueles produtos do século passado, uma construção cultural da escrita e da produção de conhecimento literário. Uma tribuna para dar a conhecer a política do estado novo, os melhoramentos da terra, as novas estradas e avenidas, o carnaval, o ciclismo, as remessas de emigrantes, a necrologia dos parentes, os anúncios e editais. Mas, também já o disse aqui, a poesia, a história, o conto. Mais tarde o futebol, a popularização das arengas da bola e dos novos estádios. A Voz de Loulé é isso tudo e, como todas as construções culturais, um produto em trânsito e dilema. Hoje, é um jornal que se constrói a si próprio, com a participação de amigos e colaboradores, página a página. Se carece de reportagem e de notícias, ele enche-se de crónicas e de comentários, colunas sociais, políticas e fiscais. Se necessita de tratamento de notícia, ele permeia-se de opinião e de entrevista. É o resultado do seu tempo e do seu lugar.
Passaram 55 anos. E, na verdade, se exceptuarmos a cor e uma maior parafernália fotográfica, ou mesmo as máquinas de processamento e de impressão, pouco mudou. Meio século é pouco, convenhamos. Mas é verdade que a imprensa escrita está, cada vez mais, numa encruzilhada. Grande parte dos seus leitores está, hoje, sentado em frente ao monitor e a ler as notícias em linha, de forma mais rápida e eficaz; e económica, talvez. A possibilidade de participação, dos leitores, nos sítios on-line dos jornais é notória, através de comentários e fóruns de interactividade, à medida de um simples clic. Uma participação cidadã, mais activa e mobilizadora dos leitores, é procurada, cada vez mais, pelos gestores dos media actuais. Os exemplos do canal televisivo de Al Gore e do jornal “Público”, de Espanha, são casos paradigmáticos do que afirmo. Também a vulgarização do filme digital e do vídeo, e a sua concomitante divulgação na rede, permitem possibilidades jornalísticas incomensuráveis, como sabemos.
O que fazer, então? Dizem-me que ninguém, nem nada, pode retirar o prazer da leitura de um jornal sopesado entre as mãos. É verdade. Nós próprios, mesmo lendo (ou ouvindo) em linha diversas publicações, entre revistas, jornais, blogues, podcasts, vídeos e o demais que a Web proporciona, também compramos e lemos jornais e revistas, portugueses ou espanhóis, às vezes brasileiros ou americanos. Então, onde está o problema? Bom, o problema é que os jornais, como qualquer produto cultural, estão sujeitos a mudanças, a reposicionamentos enquanto objectos de consumo cultural. E precisam de encontrar novos caminhos. Se olharmos para o Algarve isso é notório, com a procura de novos formatos para a imprensa escrita. No concelho de Loulé, pelo menos três jornais têm sítios on-line e que conste, o facto não lhes retirou leitores para o formato papel. Quando isso acontece, é claro que a contrapartida é sempre mais vantajosa, através da presença dos leitores nos espaços participados da rede. E já agora poderia falar da publicidade, mas isso é outra história.
Pois bem, os novos caminhos da imprensa já estão escritos, e trilhados, por agora e por muita gente. Pois, no futuro, também já o sabemos: a imprensa escrita tal como a conhecemos hoje desaparecerá, envolta num misto de rede conexa de vários formatos tecnológicos. Para bem do leitor, claro.
A Voz de Loulé, 1 Dezembro 07