Depois de tantas horas de debate e de reflexão sobre a Operação Marquês, deixo a opinião de Daniel Oliveira, no «Expresso».
OS MEGAFALHANÇOS
Quando o Ministério Público nos quer contar a história de um crime que envolva “poderosos”, parece aquelas pessoas que perderam a capacidade de síntese. Seguem dezenas de caminhos, acabando por perder o fio à meada. O problema é que à medida que a história se vai alongando mais difícil se torna cumprir o objetivo dos procuradores: a condenação. A beleza da anatomia completa do crime é excelente para aparecer nos jornais, uma tragédia quando chega a tribunais. Poderia dizer, como ouvi de Poiares Maduro, que o Ministério Público tem substituído o princípio da oportunidade, que tem riscos mas o seu racional, pelo princípio da legalidade, que obriga a tudo investigar, criando um puzzle impossível de completar. Em vez de pegar no bisonte e o desfazer em pequenas peças que possam ser usadas, carrega o bicho às costas até ao fim, porque tudo aquilo é crime e deve ser investigado.
A minha tese é menos benigna: que substituiu o princípio da eficácia pelo princípio da popularidade. E que isso resulta de uma cultura instalada em boa parte do topo do sistema judicial, que se vê como regenerador de regime, na convicção de que isso reforça o seu poder simbólico. Esta justiça proclamativa alimenta uma cultura de derrota prática com vitórias morais.
A Operação Marquês tem 53 mil páginas e mais de 14 milhões de ficheiros informáticos. O despacho final tem quatro mil páginas, a decisão do juiz de instrução tem quase sete mil. Foram feitas duas centenas de buscas, ouvidas 229 testemunhas. Foram recolhidos dados bancários de quinhentas contas, muitas delas no estrangeiro. Demoraria uns cinco anos a ouvir as escutas na íntegra, onde tudo é despejado sem critério nem controlo. Só como humor negro se critica a demora de Ivo Rosa. Estes números absurdos são apresentados como sinal de solidez e trabalho. São o anúncio de uma derrota quase certa. São gigantes que se arrastam lentamente e dificilmente se levantam quando tropeçam. Se lhes for retirada uma peça fundamental, desabam sem conserto.
Ao gigantismo do processo opõe-se o gigantismo dos adversários. Num mesmo processo, estão quase todos os donos do nosso passado recente: um dos primeiros-ministros mais relevantes da nossa democracia, o banqueiro mais poderoso, um dos mais importantes gestores, um dos maiores grupos na área da construção. Só falta Mexia e a EDP. Com eles, 40 dos melhores advogados do país, capazes de descobrir cada pequena brecha na lei e na acusação.
No mesmo julgamento, há negócios na Venezuela, a Parque Escolar, o TGV, a OPA sobre a PT e os seus negócios com as empresas brasileiras Vivo e Oi, empréstimos para empreendimentos turísticos, concessões rodoviárias. Entra quase tudo, na vontade de julgar todos os “donos disto tudo”. Cada um destes crimes é difícil de provar. Quando se juntam, nem despejando todos os meios no Ministério Público se conseguiram cumprir prazos e fazer uma investigação sólida.
Independentemente da leitura que cada um faça da decisão de Ivo Rosa, e eu sou dos que não alinha num linchamento onde apenas há disputas jurídicas legítimas, acredito que se o Ministério Público tivesse partido este processo às postas José Sócrates já teria sido julgado, provavelmente condenado e até estaria a cumprir pena. Ao optar por este caminho, a probabilidade de falhar é enorme, a probabilidade de cumprir prazos e prescrições é quase nula. O problema não está apenas na lei ou nos juízes. Está em quem, no topo do PGR, manteve esta estratégia em troca de boas manchetes ou seguindo obstinadamente uma má tradição.
O preço pago pela democracia é imenso. Quando as pessoas passam anos a ouvir falar de uma gigantesca teia de crimes e isso se desmorona, desvalorizam os factos indesmentíveis saídos da decisão instrutória: que Sócrates vai responder por crimes graves e que o recurso poderá rever a leitura do juiz quanto às prescrições e à fraude fiscal – sobre a frágil prova da corrupção concreta parece-me mais difícil, mas pode acontecer.
As expectativas criadas são proporcionais ao gigantismo do processo. As pessoas acreditam que se julgará o regime, o que só elas podem fazer, pelo voto. Não reelegendo autarcas que foram condenados por estes crimes, por exemplo. Imaginem o que era estar a julgar Sócrates por um destes crimes, com ele já condenado e a cumprir pena por outros, como aconteceu com Vale e Azevedo. Viveríamos este ambiente de deceção?
O Ministério Público merece os créditos de ter aberto este processo. Mas quer títulos de jornais ou sentenças em tribunais? Quer perseguir corruptos ou regenerar a política? Não é só a política que tem de se repensar. É a Justiça. A começar pelos que saem sempre bem destas histórias, mesmo quando perdem.