quinta-feira, novembro 11, 2021

'Cidadanias em transição'

A Casa da Cultura de Loulé fechou o ciclo de tertúlias, que tem vindo a realizar, com o tema da Cidadania. Sobre o assunto, produzi um texto elaborado a partir da minha intervenção e que abaixo reproduzo:

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Parece ser consensual que a ideia e a prática da cidadania nascem com a corrente dos liberalismos do século XIX. Em Portugal, e para alguns autores, a cidadania é definida e marcada pelos liberais daquele século e continuada e alargada pelos republicanos. É nesta altura que a cidadania assume qualidade de ‘legitimidade política’. Mas o conceito (tanto liberal, quanto republicano) é restrito a dotar de cidadania apenas os considerados cidadãos livres, que detêm hegemonia sobre uma população não livre. Recorde-se, a propósito, que mesmo em período republicano, o direito de votar estava vedado às mulheres, tendo mesmo sido reduzido durante a ditadura salazarista a um menor número de cabeças de casal e sempre de forma fraudulenta.

De qualquer modo, não é despiciendo o papel dos primeiros republicanos na defesa e concretização dos direitos de cidadania, com a criação do Registo Civil, ou do anarco-sindicalismo, com a criação do movimento de instrução e de educação popular nos sindicatos, nas associações e nas universidades populares.

Para outros autores a cidadania é um conceito em transição. As razões prendem-se: i) com as redefinições do papel do estado, sobretudo com as novidades do estado social; ii) com a desarticulação do ‘binómio estado-nação’. Sabemos de muitos estados constituídos por várias nações, de que é exemplo a vizinha Espanha. Para além disso muitos estados estão organizados em federação, mostrando a volatilidade das práticas de cidadania entre eles (exemplos como os Estados Unidos da América ou o Brasil, mostram isso, mas na Europa podemos ainda citar a Alemanha, unificada após a queda do muro de Berlim). Ou podemos falar ainda de nações sem estado, casos de Israel ou da Palestina; iii) outra razão tem a ver com os processos, cada vez mais rápidos, de globalização e de transnacionalização. Este último aspeto trouxe questões novas e pertinentes à cidadania, no que respeita por exemplo aos direitos dos migrantes. Por isto, fala-se de ‘cidadania restrita’, quando esta está dependente da lógica do estado-nação; e de ‘cidadania ampliada’, integrando nesta os direitos sociais, de trabalho, entre outros. Para além disso, as migrações por trabalho, fuga a fenómenos sociais ou naturais, acrescentam novas funções universais ao conceito de  cidadania.

Mas sabemos que as condições para exercer a cidadania estão extremamente limitadas, por causas como a pobreza, o desemprego, a iliteracia económica, tecnológica ou escolar, as desigualdades sociais, as questões de género, entre tantas outras. Para o poder, quer hoje seja socialista, social democrata ou liberal, quer o capitalismo seja de estado ou privado, a cidadania continua a ser um conjunto de direitos a evitar, no exercício dos cidadãos livres.

Quer seja como trabalhador, como consumidor, ou noutra qualquer vertente, a cidadania precisa de ser aprofundada em formação e participação social. Só dessa forma ela pode constituir-se em veículo organizado de defesa dos vários direitos, a nível local – território indicado para o seu desenvolvimento – através de um pensamento global, que tenha em conta os direitos universais consagrados e assumidos pela maior parte das nações democráticas. Aos estados, deve ser exigido que esse trabalho seja também uma das suas obrigações. Mas compete aos cidadãos, como pessoas individuais livres e de forma coletiva organizada, dar os maiores passos. Porque a cidadania não é só uma mera concessão do estado, mas sim uma conquista das classes populares, e a sua construção permanente faz-se com a ampliação da voz e da ação dos cidadãos.