O que lemos, quando lemos um livro pela segunda vez? Podemos dizer que a construção do que lemos, a sua interpretação, faz-se claramente a partir do contexto pessoal e social do momento que vivemos. Parece verdade a conhecida afirmação de Ortega y Gasset, de que «o homem é ele próprio e a sua circunstância». Vejamos um exemplo, entre as muitas leituras, segundas e terceiras leituras, que habitualmente faço.
Lendo, de novo, os ensaios de Javier Marías, escritor e ensaísta castelhano, adepto confesso do Real Madrid, no seu catálogo de ensaios sobre futebol Selvagens e Sentimentais-Histórias do Futebol (Dom Quixote, 2002), verifico o meu interesse – anotado a lápis – em sublinhar a miséria cultural e desportiva dos dirigentes dos clubes de futebol. Marías assinalara, no ensaio ‘Memória Pessoal e Viva’, de 1997: «Não sei que perverso processo conduz a que se erijam em presidentes de clubes indivíduos mal-encarados, grosseiros, chocarreiros e despóticos…». Percebo. Na altura, nesta primeira leitura, estava a escrever e publicar crónicas sobre desporto no jornal A Voz de Loulé, com o título ‘Treinador de Bancada’.
Agora, na mesma crónica, o que chama a atenção? Na mesma página (103), e depois de bater nos endinheirados e corruptos presidentes de clubes (onde já ouvimos isto?), Javier escreve e eu escolho como bandeira nova: «Se calhar devia ter mais cuidado, porque depois ainda aparece por aí um crítico literário manhoso a denunciar que nos meus artigos insulto anjinhos probos como eles». Por que escolho esta frase? Simplesmente porque estamos no tempo da censura aos escritores, investigadores ou outros pensadores que não pensam como nós, afastados e censurados em conferências e ensaios, confundindo-se dois planos distintos: o pessoal e o artístico, a vida e a literatura. Foi o que Marías quis dizer!