domingo, dezembro 25, 2005

Contrasenso convida:

Como anteriormente referi esta é (foi) a última coluna “Contrasenso” na Voz de Loulé.
Aqui estive a escrever desde 1 de Maio de 2003, em formatos diferentes e nos últimos tempos com o convite aos amigos Luís Guerreiro, Maria Amália Cabrita, Luís Ene e Joaquim Mealha Costa, os quais asseguraram esta coluna nos últimos meses, por impedimentos académicos da minha parte. A este projecto seguir-se-ia outro, com início no primeiro trimestre de 2006, que envolveria os amigos aqui referidos. Imponderavelmente, A Voz de Loulé vai suspender a publicação a partir do número de 15 de Dezembro 05. Por este motivo resta-me agradecer: em primeiro lugar aos leitores e amigos que são a seiva da imprensa escrita; aos amigos que aqui escreveram de forma brilhante; e ao director do jornal, José Maria da Piedade Barros, sua esposa e administradora da publicação e a toda a restante equipa.
Por agora fica a coluna escrita por Luís Guerreiro. Até qualquer dia.

O Centenário do Carnaval de Loulé


Por força da roda do tempo a edição de 2006 do Carnaval de Loulé corresponde ao seu Centenário. Foi justamente há cem anos que um grupo de louletanos liderados por Ventura Sousa Barbosa, o verdadeiro «pai» do Carnaval de Loulé, decidiu organizar os primeiros festejos carnavalescos desta terra, com a denominação de Carnaval Civilizado e subordinado ao lema Paz, Amor e Caridade.
Estes epítetos têm razão de ser: os festejos do carnaval até 1906 eram extremamente agressivos, sujos, sem graça, monótonos e sensaborões, segundo os relatos da época. Era preciso alterar-lhe a feição, civilizá-lo, torná-lo mais asseado e elegante. Por outro lado, nesta época, existiam muitos pobres, mendigos e miséria por todo o lado. Era preciso conferir uma dimensão humanitária a esta festa de excessos e abusos passíveis de condenação, dando-lhe um ar de alegria e de civismo, onde toda a sociedade louletana participasse e simultaneamente servisse para aliviar o sofrimento e a fome daqueles que efectivamente mais precisavam.
Do programa, amplamente divulgado por todo o concelho, constava nesta primeira edição uma Matinée no “Teatro Louletano”, Batalha de Flores e um Bodo aos Pobres. A primeira Batalha de Flores, que constituiu um êxito assinalável não só pela presença de milhares de pessoas e pela forma ordeira como tudo se passou mas também pela beleza e bom gosto dos carros alegóricos, desenrolou-se na Rua da Praça, entre o Largo dos Inocentes (actual Largo Gago Coutinho) e as Bicas Novas (actual Largo Bernardo Lopes). Abrilhantaram os festejos três filarmónicas: «Artistas de Minerva», «Marçal Pacheco» e «Progresso Louletano».
As primeiras edições do Carnaval de Loulé tiveram mais ou menos este figurino. Batalha de Flores com o percurso por vezes estendido até à Rua dos Grilos (actual Av. Marçal Pacheco), espectáculos teatrais e Bodo aos Pobres. Este Bodo aos Pobres durou pouco tempo, dizem que a sua extinção se terá ficado a dever às cenas tristes que esta cerimónia despertava e também pelo facto de ter surgido em Loulé uma Associação que tinha por objectivo principal a assistência à mendicidade.
A partir de 1926 o Carnaval de Loulé assume uma nova fase, passando a Santa Casa de Misericórdia a organizar os festejos e as receitas a serem orientadas integralmente para o funcionamento e melhoramento do Hospital de Loulé.
Foram tempos áureos do nosso Hospital, ao ponto de ser um dos melhores equipamentos de saúde do Algarve, em grande medida devido às avultadas receitas que os festejos, cada vez mais populares por esse país fora, iam gerando, mas também ao profissionalismo e competência do seu corpo clínico, com destaque para o Dr. Bernardo Lopes. Cada vez há mais gente de outras terras a querer ver o nosso Carnaval, pela fama que vai adquirindo, o que naturalmente acarreta problemas logísticos variados. Desde logo carência de alojamentos, transportes e pouca restauração. Depois é a própria natureza dos festejos que se começa a aperfeiçoar, conferindo maior profissionalismo à organização através das Comissões criadas para o efeito, o aumento dos carros alegóricos com a presença das freguesias, instituições e carros-reclame. É evidente que no meio de tudo isto, também houve problemas de crescimento, crises insuperáveis e transtornos inesperados. Sem querer entrar muito por esta área, recordo o célebre ano de 1941, em que só por um triz e influência de gente importante é que houve Carnaval de Loulé. O mundo estava em guerra, Portugal apesar do seu estatuto neutral, sofria as consequências do conflito, adoptando o racionamento de muitos bens essenciais e para cúmulo do azar, em Fevereiro desse ano, dá-se em Portugal um violento ciclone que provocou mais de uma centena de mortes e avultados prejuízos. Salazar proibiu os festejos de rua. Sem entrar em grandes pormenores o Carnaval de Loulé foi excepcionalmente autorizado, atendendo a fins de beneficência que tinha.
Até a Câmara de Loulé começar a organizar o Carnaval em 1977, os festejos assumiram sempre esta característica dupla: o aspecto artístico aliado aos fins de beneficência.
A partir desta data o Carnaval passou a ser um cartaz turístico de época baixa, um espectáculo de cor e alegria a que milhares de pessoas assistem através de um ingresso na Av. José da Costa Mealha e, supostamente, um motor da economia local e regional.
Perdeu-se com este figurino a participação activa da população que a pouco e pouco deixou de estar envolvida na sua organização pois todos os serviços passaram a ser profissionalizados (entenda-se remunerados) e deixou de haver o tal objectivo filantrópico que mercê de acções bem concertadas desse tempo apelavam à generosidade e à participação voluntária de centenas de pessoas. Os tempos não param, passaram cem anos sobre a festa memorável que foi o primeiro Carnaval Civilizado de Loulé, muita coisa mudou na nossa terra, no país e no mundo e quer queiramos quer não, as coisas evoluíram e não podemos mais voltar atrás numa lógica de saudosismo ou revivalismo. Podemos melhorar, aperfeiçoar, fazer diferente e nesse sentido penso que este Centenário, para além das comemorações inevitáveis, até porque é a festividade mais conhecida além-fronteiras de Loulé, deve servir também para reflectirmos e debatermos o futuro deste valioso património que nos foi legado por uma geração de louletanos ilustres.

[Luís Guerreiro]