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O Estrangeiro
Durante o mês de Novembro, o estrangeiro tornou-se a figura central em França. O estrangeiro desconhecido, bem entendido, tal como o soldado que os poderes dominantes transformaram em estátuas depois da I Guerra Mundial era desconhecido. Em ambos os casos, há qualquer coisa de póstumo: foi depois de muitos deles - pessoas com nomes e vontades próprias se terem manifestado - , uns de uma forma, outros simplesmente morrendo, que a ordem constituída se lembrou de lhes conceder o estatuto de potência anónima.
Isto, claro, por parte da imprensa, porque durante a fase em que se desenrolam os acontecimentos os estados maiores têm habitualmente designações mais operacionais e menos metafísicas. Por exemplo, em 25 de Outubro último, um ministro francês achou que “racaille” (escumalha, em tradução livre) seria mais prático. E agora, alguns factos esclarecedores. A França tem uma taxa de desemprego de 10%, que no caso da população imigrante é superior a 17%. No caso dos filhos de magrebinos, entre os 19-29 anos é de...40%. A partir daqui é facil deduzir que existe uma geração com um potencial criativo praticamente perdido porque se a estes números juntarmos as taxas do insucesso escolar e da escolaridade interrompida, que se concentra também nestes grupos, facilmente se percebe como a sociedade se prepara para perder por inteiro o seu contributo.
Agora, eles são estrangeiros relativamente a quem e a quê? Não à região parisiense e à França, visto que nasceram lá. Não às instituições administrativas, escolares, eleitorais, policiais, que os registaram por mais de uma vez e sempre que foi necessário. Não à publicidade que lhes fez entrar pelo ecrã dos seus televisores as amostras do que faz o resto da sociedade, às grandes superficies onde vão gastar os seus subsídios estatais (se e quando o recebem) e às agências de trabalho temporário que os chamam ocasionalmente. Assim, eles são nacionais para todos esses efeitos e apenas estrangeiros quanto ao seu futuro como trabalhadores franceses.
Pode a seguir perguntar-se quanto tempo levará a sociedade francesa – e já agora, alemã, inglesa, belga ou...portuguesa – a fabricar mais estrangeiros destes. Há várias projecções que apontam que daqui por 2 ou 3 gerações, a taxa de desemprego europeia vai estar próximo do que está hoje neste grupo dos jovens filhos de magrebinos em França: acima dos 30%, próximo dos 40%.
Nessa altura, vamos ser todos de Grigny-la-Grande Borne: registados em tudo quanto é repartição, estrangeiros a tudo quanto é emprego e perspectivas de futuro. Vamos ser todos “escumalha”? Provavelmente não, porque seremos nessa altura uma maioria (não um grupo “visível”) e visto que continuaremos a votar, não se dizem tais coisas do eleitorado. Mas se vivermos, ainda que anafados e com problemas de colesterol, em belos bairros periféricos, se estudarmos em escolas públicas degradadas o máximo de tempo possível (não para aprender grande coisa mas para pesarmos o mais tarde possível nas estatísticas do desemprego) e se não tivermos nunca como perspectiva de trabalho senão os 15 dias de substituição que a agência de “recursos humanos” nos enviar em cada seis meses, atenção.
Para citar um outro francês, mais polido do que Sarkozy (ele próprio um emigrado, só que do tempo das vacas gordas), De te fabula narratur. É de nós que se fala nesta história dos estrangeiros.
[Maria Amália Cabrita]
Durante o mês de Novembro, o estrangeiro tornou-se a figura central em França. O estrangeiro desconhecido, bem entendido, tal como o soldado que os poderes dominantes transformaram em estátuas depois da I Guerra Mundial era desconhecido. Em ambos os casos, há qualquer coisa de póstumo: foi depois de muitos deles - pessoas com nomes e vontades próprias se terem manifestado - , uns de uma forma, outros simplesmente morrendo, que a ordem constituída se lembrou de lhes conceder o estatuto de potência anónima.
Isto, claro, por parte da imprensa, porque durante a fase em que se desenrolam os acontecimentos os estados maiores têm habitualmente designações mais operacionais e menos metafísicas. Por exemplo, em 25 de Outubro último, um ministro francês achou que “racaille” (escumalha, em tradução livre) seria mais prático. E agora, alguns factos esclarecedores. A França tem uma taxa de desemprego de 10%, que no caso da população imigrante é superior a 17%. No caso dos filhos de magrebinos, entre os 19-29 anos é de...40%. A partir daqui é facil deduzir que existe uma geração com um potencial criativo praticamente perdido porque se a estes números juntarmos as taxas do insucesso escolar e da escolaridade interrompida, que se concentra também nestes grupos, facilmente se percebe como a sociedade se prepara para perder por inteiro o seu contributo.
Agora, eles são estrangeiros relativamente a quem e a quê? Não à região parisiense e à França, visto que nasceram lá. Não às instituições administrativas, escolares, eleitorais, policiais, que os registaram por mais de uma vez e sempre que foi necessário. Não à publicidade que lhes fez entrar pelo ecrã dos seus televisores as amostras do que faz o resto da sociedade, às grandes superficies onde vão gastar os seus subsídios estatais (se e quando o recebem) e às agências de trabalho temporário que os chamam ocasionalmente. Assim, eles são nacionais para todos esses efeitos e apenas estrangeiros quanto ao seu futuro como trabalhadores franceses.
Pode a seguir perguntar-se quanto tempo levará a sociedade francesa – e já agora, alemã, inglesa, belga ou...portuguesa – a fabricar mais estrangeiros destes. Há várias projecções que apontam que daqui por 2 ou 3 gerações, a taxa de desemprego europeia vai estar próximo do que está hoje neste grupo dos jovens filhos de magrebinos em França: acima dos 30%, próximo dos 40%.
Nessa altura, vamos ser todos de Grigny-la-Grande Borne: registados em tudo quanto é repartição, estrangeiros a tudo quanto é emprego e perspectivas de futuro. Vamos ser todos “escumalha”? Provavelmente não, porque seremos nessa altura uma maioria (não um grupo “visível”) e visto que continuaremos a votar, não se dizem tais coisas do eleitorado. Mas se vivermos, ainda que anafados e com problemas de colesterol, em belos bairros periféricos, se estudarmos em escolas públicas degradadas o máximo de tempo possível (não para aprender grande coisa mas para pesarmos o mais tarde possível nas estatísticas do desemprego) e se não tivermos nunca como perspectiva de trabalho senão os 15 dias de substituição que a agência de “recursos humanos” nos enviar em cada seis meses, atenção.
Para citar um outro francês, mais polido do que Sarkozy (ele próprio um emigrado, só que do tempo das vacas gordas), De te fabula narratur. É de nós que se fala nesta história dos estrangeiros.
[Maria Amália Cabrita]
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Quase no fim o projecto "Contrasenso" na Voz de Loulé. A próxima coluna será a última.