sábado, setembro 17, 2005

"Contrasenso" convida:

Todos contamos histórias e eu até as escrevo
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Todos contamos histórias, essa é que é essa, ainda que uns o façam muito melhor do que outros e com mais frequência. Diz-se que a necessidade aguça o engenho, e talvez por isso a maior parte de nós apenas conte histórias quando tem de arranjar uma qualquer desculpa. No entanto, contar histórias é talvez a característica que mais nos define como humanos e, como disse a começar, todos o fazemos. Alguns de nós até as escrevem, como eu, e gostaria de partilhar a minha experiência nesta área escrevendo com vocês algumas histórias muito pequenas, em que se mostra mais fácil perceber como são feitas.
É claro que se escreve escrevendo, tal como se faz qualquer coisa fazendo-a, por erro e tentativa, e é isso que vou fazer. Primeiro é preciso começar. Uma qualquer pequena frase (ou ideia) é suficiente.
Como por estes dias tenho ouvido falar muito do Euro Milhões e do que aconteceria a quem o ganhasse, é mesmo por aí que vou começar: "um homem ganhou o maior prémio de sempre no Euro Milhões". É afinal o que todos gostaríamos, mas o que aconteceria? Pois bem, a história poderia ser aquela mesma que todos sonhamos: (1) Era uma vez um homem que ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões e viveu feliz para sempre.
No entanto, e espero que concordem, seria uma história bastante comum e aborrecida: sem mistério e sem surpresa. Vejamos pois outra possibilidade: (2) Um homem ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões. Depois acordou, e foi a correr entregar o seu boletim.
É ainda uma solução fácil mas já diz muito mais que a primeira, não acham? Faz-nos pensar, faz-nos rir, perturba-nos. Como fazer então? Por que não quebrar a relação causa e efeito que se estabelece normalmente entre o dinheiro e a felicidade? Por exemplo, assim: (3) Um homem ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões. Durante algum tempo foi feliz. Depois, nem por isso. Mas ainda hoje é rico.
Está um pouco melhor, abre mais possibilidades, deixa mais margem de manobra ao leitor, mas pode-se sem dúvida ir mais longe. Não é invulgar que alguém morra ao saber que ganhou bastante dinheiro, é uma história que já todos ouvimos. Experimentemos uma variação: (4) Um homem ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões. A mulher deu-lhe a notícia momentos antes de o matar.
Confesso que gosto mais, é uma pequena história negra, faz-nos rir de nós mesmos. E se eu ganhasse o Euro Milhões seria que a minha mulher me mataria para o receber? – perguntamos a nós mesmos e rimos, rimos ao mesmo tempo que ponderamos a possibilidade de a nossa mulher preferir o prémio a nós.
Também se pode perguntar o que seria menos provável que acontecesse a alguém que ganhasse uma grande soma de dinheiro. Já pensaram? De certeza que dará uma boa história: (5) Um homem ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões. No dia seguinte suicidou-se. A decisão estava tomada há muito.
Contra todas as probabilidades ele não muda os seus planos de morte, e nós rimos um riso amarelo, intrigados e desconfiados dos nossos próprios desejos. Parece-me bastante bem, modéstia à parte.
Claro que podia continuar a contar histórias a partir dessa frase, mas este artigo está a chegar ao fim, por isso só acontecerá se vocês o fizerem. Estejam à vontade, contem mais histórias.

[Luís Ene- publicado na Voz de Loulé de 15 de Setembro]