sábado, outubro 01, 2005

"Contrasenso" convida

Maria Amália Cabrita é a convidada da coluna Contrasenso, em «A Voz de Loulé» de 1 de Outubro:
*
A metáfora dos incêndios

A propósito dos fogos que queimaram uma boa parte do país durante os três últimos meses, naturalmente que muito se falou, escreveu e – talvez mesmo – ouviu em Portugal.
Em várias dessas comunicações, os incêndios ganharam um conteúdo simbólico, que os tornou ainda mais assustadores e negativos do que já eram. Graças a esse conteúdo, tornaram-se numa espécie de reflexo da debilidade nacional. A sua existência, o seu número e mesmo a sua extensão provaram – mas quem precisa agora de provas? – a incapacidade da sociedade portuguesa para prevenir e remediar catástrofes, bem como a descoordenação dos serviços do Estado. Indo um pouco mais longe, em algumas opiniões os fogos já não se limitavam a reflectir essa anomia social: eram vistos como sua punição, tal como se algum Jeová reformado e já sem a capacidade de expedir cometas os tivesse enviado para fazer reentrar os portugueses no caminho da “ordem e progresso”.
Em resumo, os fogos abriram e fecharam os noticiários, foram as figuras do mês e quase todos os candidatos a escrutínios próximos os visitaram (metaforicamente, como se compreenderá dadas as altas temperaturas que irradiam das matas durante a combustão).
Poderá valer a pena averiguar o que há de instrutivo nesta piromania colectiva. Não à maneira dos Plutarcos e das lições da História (da qual nem o próprio Plutarco fazia assim tanto caso) mas com a ilusão de encontrar pequenas verdades domésticas.
Está fora de dúvida que a consciência colectiva identificou bem o objecto e viu bem porque é que com os fogos não se brinca. Os fogos estivais já são o nosso ex-libris, aquilo por que somos conhecidos em todos os países que sintonizam a Euro-News (quanto aos outros, é impossível dizer como ou se nos recordam).
Também é um facto que os ditos fogos só acontecem em Portugal porque a nossa sociedade é na Europa aquela que mais se parece com a que Thackeray descrevia como “anarquia completa, tendo só a polícia a mais”. Para que isto não pareça muito excessivo, bastará recordar-nos:
1º, do que foi a compra desenfreada de terrenos por parte das celuloses nos últimos 25 anos e a correspondente eucaliptização do país que o tornou um previsível coktail molotov desde 1985 (!). Temos a maior mancha de eucaliptos da Europa e veja-se sobre isto um dos relatórios da OCDE desse ano sobre Portugal, que alertava para a combustibilidade acelerada que o país estava a ganhar;
2º, do que foi o abandono quase completo da agricultura, que aliás está na base da florestação comercial do ponto anterior, sem ninguém ligar um chavo ao que ia acontecer quanto à limpeza das matas (e que matas!) no futuro;
3º, do ordenamento territorial e dos famosos PDM, outro dos nossos ex-libris que, da forma libertária que nos caracteriza, só excluem a construção de casas nos braços de mar e nos lagos (em certos cursos de água, quando secos, existe direito consuetudinário favorável);
4º, do pormenor pitoresco de Portugal ser o único país da Europa do sul sem frota aérea de combate a fogos, não sendo este facto consensualmente negativo (muitas empresas de aluguer de helicópteros acham isto natural);
5º, do zelo com que todos os anos se reformam os serviços de coordenação e se vão acrescentando instâncias, órgãos (com as correspondentes siglas e postos de chefia) e centros de comando;
etc, etc.
Quando se pensa nisto tudo, não há que fugir, os fogos ganham um estatuto de consequência inevitável. Estiveram aí porque não podiam deixar de aparecer, tudo estava a pedi-los. Ah, e nem é preciso ir buscar os efeitos de estufa ou coisa que o valha, mesmo que isso se possa provar. Estavam reunidas todas as condições e a verdade é que o país, lá no fundo, estava à espera deles.
Mas isto basta para fazer deles metáforas? Talvez ainda não. As borbulhas são um sintoma do sarampo, não são a metáfora do sarampo. Os fogos de verão são as consequências do nosso estado civilizacional, não o simbolizam.
Mas há um aspecto em que talvez legitime o uso metafórico que a nossa comunicação social fez deles e que aí sim, representam bem a nossa sociedade. É o seu carácter meteórico, efémero (flamejante aqui parece um adjectivo um pouco de mau gosto) e sazonal. Os fogos tiveram a sua hora de glória mas – sic transit gloria mundis - já passou. Agora já a Casa Pia e tuti quanti recuperaram o seu lugar. Em Dezembro teremos, espera-se, o protagonismo de Reguengo do Alviela e das zonas baixas do Ribatejo. Os fogos terão de esperar por Junho e pela nova época balnear para voltarem a ser entrevistados.
Enfim, se há metáfora é esta: os fogos são previsíveis, como tudo o que acontece por cá.