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Voltou a lembrar-se da tal Maria Antónia. Que raio! Se ela era pouco mais nova do que ele e trabalhava ali naquela fábrica arcaica, onde a sua mãe deixara o corpo e a alma, mas ganhara artroses nas mãos e nas costas, ele deveria conhecê-la. Aquele nome, outra vez, a martelar-lhe os ouvidos e a calcar-lhe as têmporas. Desde que saíra da aldeia e rumara à capital da sua ambição, nunca mais voltara àquela terra. Agora que tinha sido transferido, ao abrigo da lei da mobilidade e da flexibilidade das aprendizagens de novas competências que o governo lá tinha inventado, logo teria de vir parar àquele lugar. Como se fosse obrigado a olhar-se, demoradamente, naqueles espelhos de feira da sua infância, ora côncavos, tornando-o mais anão do que criança, ora convexos, fazendo-o parecer o magricela do gigante de Moçambique que vira numa qualquer feira de S. Martinho.
À porta da fábrica, o mestre de fabrico controlava o seu velho relógio de ponteiros. Debaixo do vidro, baço de muitos riscos, os ponteiros marcavam oito horas, e nada. Onde estavam os seus operários e operárias que costumavam marchar silenciosos e apressados, em fila, nos saudosos tempos da sirene estridente de vapor, que emergia da caldeira de carvão nos anexos da fábrica? Ele, que tinha levantado o braço, contrariado, para votar a favor daquele novo instrumento sonoro, gostava ainda mais dos idos da buzina. Nesses tempos, o seu homem percorria de bicicleta todo o bairro e arredores, soprando o grande búzio do mar, como se fosse o saxofone da filarmónica da recreativa rica, onde aprendera a tocar e da qual saía para feiras, romarias e saudações aos presidentes da república, eleitos ou não.
Ele sabia de quem era a culpa daquela merda. Aquela Maria Antónia, armada em revolucionária, é que tinha proposto que a chamada para a fábrica fosse feita através do e-scravo, um dispositivo electrónico em forma de cravo que o presidente da república mandara conceber e entregar a todos os trabalhadores, para que assim pudessem estar em permanente contacto, vinte e quatro horas por dia, com todos os membros do gabinete gestor da nação. Mas por que razão aquela gente, que vivia em barracas e era quase toda analfabeta, tinha que possuir telemóveis, plasmas de TV, automóveis trocados pelo abate e, ainda por cima, o e-scravo? Aquela flor de tecnologia que só os antigos alunos do liceu eram capazes de manobrar? Tudo por culpa daquela mania da representatividade mais participada do raio da cidadania, que o seu patrão, aquele de quem era um extremoso colaborador, agora tinha inventado. Era por essas e por outras que qualquer uma – sim, por que as mulheres sempre foram mais escorregadias do que as enguias – vinha agora com ideias, como a Maria Antónia naquela reunião sobre a produtividade e a competitividade das conservas de peixe num mundo globalizado, que o presidente da Câmara tinha convocado.