O RALI LISBOA-ALCOCHETE
Vem isto a propósito do cancelamento do rali Lisboa-Dakar, 2008, de que quero falar. Como se sabe, foi uma ameaça das células argelinas da Al-Qaeda que desencadeou o cancelamento da prova pela Amaury Sports Organisation, e que pôs a chorar organizadores e patrocinadores da prova. Os autarcas de Portimão e de Alcochete exigiram recompensas monetárias pelos prejuízos e João Lagos prometeu fazer a prova sozinho, montado num camelo (como aparece na capa da revista Única, do Expresso, de 26 de Janeiro passado).
Ao contrário dos choros, eu ri-me à gargalhada. Não porque achasse que o governo francês, que ordenou o cancelamento, se estivesse a submeter ao fundamentalismo de grupos terroristas. Ou porque ficasse com muita pena da “Total”, patrocinadora estatal do combustível, agora desarredada da exploração do petróleo da Mauritânia. Antes, porque seria uma oportunidade para criar uma alternativa: a do rali Lisboa-Alcochete (sabem, um deserto ali na margem sul do Tejo). Bom, é claro que me ri por outras razões: por exemplo, por ver a partida de dois motociclistas, com bandeirinha e tudo. Ou por ver, na televisão, aquela comitiva bucólica de jipes de Portimão que foram em romaria pelo percurso do Dakar.
Certo, certo é que, a minha opinião, não andará muito longe do que irá suceder em 2009. Primeiro, a organização apostou na ideia Lisboa-qualquer coisa na Polónia (o país mais importante dos novos membros europeus de Leste) e, por estes dias, fala-se da América Latina, Brasil, Chile, Argentina, por aí. Como já se percebeu, os motoristas de carros, motas e camiões gostam mesmo é de desertos, quer sejam os do Kahalaari ou da Patagónia. O que não deixa de ser sintomático, para perceber o carácter neo-colonialista da prova.
Porque se insiste tanto em África? Simples. Porque a melhor forma de desenvolver a solidariedade com os países africanos, é fazer roncar os motores por aquelas aldeias pobres e por terras tão rústicas, derramando milhares de litros de combustível, entre os olhos esbugalhados de meia dúzia de tuareges, convidados à publicidade do ocidente europeu.
Lembram-se de Rommel, o marechal nazi dos panzers alemães? À sua maneira, ele também queria pacificar aquelas terras. Se muitos países europeus colonizaram África, porque não voltar lá a toda a hora, mostrando a habitual sobranceria europeia dum rali cor-de-rosa. É que, na verdade, eu nunca percebi para que é que aquilo serve. Que raio de desporto é aquele? Talvez o leitor me possa elucidar e explicar que a estética está no romantismo das casas de adobe e das palmeiras verdejantes. Ou que a ética está no consumo do petróleo e nos inolvidáveis percursos nas dunas gigantes. Como se sabe, a comitiva do Dakar estabelece imensos laços de afecto e grandiosos momentos de convívio fraterno entre os povos, sobretudo com as crianças.
Coloquemo-nos, então, do lado de lá. Do lado daqueles imigrantes marroquinos, ansiosos por experimentar esse paraíso terreal do ocidente, que a publicidade do Dakar vende nos media globalizados. Sim, esses, por exemplo aqueles que navegaram à bolina no “cayuco” de 25 cavalos e aportaram ali na Ilha da Culatra, estão, hoje, quase todos nas choldras de Casablanca, entre criminosos comuns. E que conste, eles talvez viessem apenas ver a partida do rali Lisboa-Dakar, em Portimão. Mas se o Dakar teve honras de noticiário a toda a hora, os imigrantes marroquinos viajaram com toda a discrição, a pedido do seu governo e com a mãozinha do nosso.
Enfim, acho que, por agora, nos deveríamos contentar com umas fotos registadas ali no Terreiro do Paço, junto de um monte de areia e de um camelo trazidos de Alcochete. E, se possível, com os pés numa bacia de água morna. E se um banco, uma seguradora, ou uma operadora telefónica nos pagasse, seria a cereja em cima do bolo.
(15 Fevereiro 2008)