quinta-feira, agosto 04, 2005

Contrasenso convida Luís Ene

MAS QUE RAIO VOU EU ESCREVER?

Não pensei, nem por um momento, em recusar o gentil convite do Hélder para escrever na coluna "Contrasenso" da Voz de Loulé, mas fiz desde logo a mim próprio uma pergunta: Mas que raio vou eu escrever? Era uma pergunta legítima: antes de se escrever deve-se pensar o que se vai escrever.

É claro que podia apenas começar a escrever e ir por aí adiante, mas tratando-se de escrita para ser lida, e para ser lida num jornal, seria sem dúvida de pouca educação não pensar em quem me poderia ler, ou seja, para quem afinal escreveria.
E assim, pensando em quem me leria, estava afinal a pensar sobre o que poderia escrever, e a tentar responder à minha primeira pergunta. A resposta não dependeria talvez tanto do que os leitores gostariam de ler, mas sobretudo do que eu mesmo sei falar, ou dito de outra forma, sobre o que é que eu sou capaz de escrever que os leitores desta coluna gostassem de ler?
Mas antes de começar a falar sobre o que quer que seja, pensei que talvez fosse melhor apresentar-me. Talvez alguns tenham lido aqui — na “Cultura” — algumas das minhas narrativas breves, género a que tenho dado especial atenção nos últimos três anos, e com as quais publiquei um livro no início deste ano. Nesse caso saberão que escrevo, sobretudo ficção, ainda que nalguns casos reduzida ao seu mínimo. Natural seria então que falasse de escrita, e do acto de narrar, segundo um crítico o tema principal do livro que referi: o primeiro volume de Mil e Uma Pequenas Histórias.
Na verdade, contar histórias é não só um dos meus maiores vícios e prazeres, mas também um tema que considero de grande importância, para além do mais porque todos contamos histórias, e estou mesmo convencido que é isso que nos distingue como seres humanos.
Assim, falar de histórias, e de como é importante contá-las pareceu-me uma boa resposta à pergunta que me trazia ocupado: Mas que raio vou eu escrever? Isto porque é verdade que não gosto de falar de política (gosto muito mais de fazê-la), não me apetecia falar de temas mais ou menos regionais (como o Faro Capital Nacional da Cultura) e de momento não me ocorria mais nada. Estava decidido! Sabia então sobre o que ia escrever. O pior já tinha passado.
Foi nessa altura que me lembrei que o texto, seja qual fosse o tema, se deveria conter numa página A4 — a espaço simples, letra Times, tamanho 12, justificado (500 a 700 palavras) — e, como ao mesmo tempo que pensava em tudo isto, estava a escrevê-lo com um processador de texto, que confesso preferir, apesar de gostar muito de escrever à mão, espreitei a barra na parte inferior do monitor e apercebi-me que não devia estar muito longe das solicitadas quinhentas a setecentas palavras. Contei-as e não estava errado; mais uma vez se tinha cumprido uma velha máxima que tenho para mim mesmo: escreve-se escrevendo.
Espero que não se sintam desiludidos com a forma que este texto tomou, nem que tenha afinal falado apenas de mim, mas é sem dúvida o assunto que melhor conheço. E termino com uma das pequenas histórias de que vos falei.
Um dia conduziram Simplício junto de um homem ainda novo, que desistira há muito de viver, e pediram-lhe para contar uma história que o ajudasse. Simplício sentou-se então junto à sua cama, e começou a contar uma história muito bela sobre a alegria de viver. Pouco a pouco, o homem foi ganhando cores, e os seus olhos recuperaram o brilho de outrora. Foi a partir daí que o poder curativo das suas histórias se tornou uma lenda, e a sua fama de curandeiro se espalhou pelo mundo. Simplício, por seu lado, nunca deixou de se considerar um simples contador de histórias.

[Luís Ene - publicado em «A Voz de Loulé» de 1 de Agosto]
Link para a imagem que o autor escolheu e que não veio na edição em papel.