quarta-feira, novembro 16, 2005

Contrasenso convida

É meu convidado no "Contrasenso" desta quinzena em A Voz de Loulé, Luís Ene:
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Brincar com a língua

Contar uma história é como jogar um jogo, um qualquer jogo, quer se pense no jogo do berlinde (às três covas, por exemplo) ou no jogo do xadrez. Existem regras, existem dificuldades e até existem adversários. Mas o essencial num jogo é que nos possamos divertir.
Este é o terceiro de três artigos (é portanto o último) em que vos falo aqui de contar histórias, e vou tentar mostrar-vos como tal actividade pode ser divertida, realçando um aspecto que nada mais é que a superação de várias dificuldades. Quando se conta uma história, quando se a escreve, temos de ter em conta todas as histórias que já foram contadas e, no entanto, contar a nossa história, contar uma nova história. E contamos e escrevemos contra a língua, a sua ambiguidade, a sua sonoridade, a sua gramática. A superação dessas dificuldades traz sem dúvida prazer a quem escreve e a quem lê. Do que vos quero falar é de como podemos brincar com a língua.
Tomemos por exemplos os lugares comuns, ou as frases feitas. Se por um lado é bom ter essas expressões sempre à mão, por outro lado é ainda melhor parodiá-las, subvertê-las, brincar com elas, como se de um jogo se tratasse. Conhecem a expressão “ir desta para melhor”? É curioso como diz tanto da nossa mentalidade e será sem dúvida divertido usá-la. Vejamos então uma pequena história, que é afinal delas que aqui temos tratado.
1. Quando a morte veio para o levar, ele recebeu-a com um sorriso aberto: finalmente ia desta para melhor.
Será que a morte nos leva desta para melhor? Tenho dúvidas, e mesmo que assim seja, não me parece que recebesse a morte com agrado. Mas isso é outra história.
E quanto a dizeres populares, sempre tão expressivos e vivos? É claro que também se pode brincar com eles. Vejam lá se conhecem os que empurrei para a seguinte história, todos eles com um denominador comum.
2. Par de botas
Era um borra-botas sem emenda e um incorrigível lambe botas. E, como se isso não bastasse, tinha uma mulher feia como uma bota da tropa. Mas não se preocupem com ele pois cedo bateu a bota.
Estão a ver como consegui em muito pouco espaço meter quase tudo e ainda um par de botas! Foi divertido para mim escrevê-lo e espero que o tenha sido para vocês lê-lo.
Mas se a ideia principal é brincar com a língua, cedo percebi que era fácil brincar mesmo com ela, a palavra língua e os seus diversos significados, usando sobretudo essa ambiguidade para criar efeitos divertidos. Pois bem, língua tem basicamente três significados: órgão principal da articulação da palavra, da deglutição e da gustação; linguagem e idioma. É com estes três significados que podemos jogar, bem como com as expressões populares que a eles se referem, como por exemplo “soltar a língua” ou “tropeçar na língua”.
3. Era um homem muito calado mas adorava trava-línguas. Este era na verdade o único tema que lhe soltava a língua e o fazia falar durante horas.
4. Tropeçava muitas vezes na língua, razão que o levou a deixar de falar enquanto andava.
E pode-se fazer mais, muito mais, sempre a brincar com a língua.
5. O gato comeu-lhe a língua, e não foi em sentido figurado. Felizmente, ele estava já estava morto e nada mais tinha para dizer.
6. Adorava tanto a língua materna que a conservou até ao fim da sua vida em formol.
7. Falava português fluentemente, com excepção das raras vezes em que mordia a língua.
8. Tantas vezes deitou a língua de fora que um dia ela não voltou para dentro.
9. Tinha uma língua porca. Um dia lavou-a e nunca mais conseguiu dizer um palavrão.
10. Estavam a falar quando ela lhe meteu a língua no ouvido com sofreguidão. Depois ela nada mais disse e ele nada mais ouviu.
Brincar com a língua, espero estar a convencê-los disso, é não só divertido mas também importante, porque nos dá a conhecer a língua que usamos e a tirar dela mais prazer e utilidade.
11. Lengalenga
O que é importante é distinguir o que é importante do que não é importante.
Perceberam alguma coisa? Perceberam pelo menos que me diverti a usar numa frase tão curta a palavra importante três vezes!
Para terminar, uma brincadeira com a língua que usa não só a nossa língua mas também a dos nossos vizinhos espanhóis, aqui tão perto. Sem dúvida que conhecem a palavra embaraçar, e já uma vez ou outra o ficaram. Agora se pensarmos em “embarazar”, que se pronuncia da mesma forma (pelo menos foi o que me garantiram) aí as probabilidades serão menores, pois embaraçar significa engravidar. E olhem que acontece aos melhores. Quando a Parker Pen começou a vender uma caneta esferográfica no México, os anúncios deveriam dizer "it won't leak in your pocket and embarrass you", ou seja, “não vazará no seu bolso e não o embaraçará”. No entanto, a empresa pensou que a palavra "embarazar" tivesse o mesmo significado que embaraçar, de modo que o anúncio acabou por dizer, depois de traduzido, qualquer coisa como: "Não vaza no bolso e você não engravida".
Então até qualquer dia. Deixo-vos com um abraço e a última brincadeira com a língua.
12. Conselho aos homens
Em Espanha, tenta nunca embaraçar uma mulher, a não ser que o desejes mesmo, e ela também.
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Eu, vou socializando por aí...