O e-scravo subversivo
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A água do rio estava tépida, vinte graus de temperatura era pouco para um verão quente, mas talvez fossem as águas frias da serra que ainda desciam pelos calcários do barrocal. Próximo da foz do rio, de certeza que a água convidaria a um banho de mar, como aqueles que, com as suas amigas de infância, dava nas pedras, os blocos de protecção da costa urbanizada da estância balnear, que a burguesia romântica da cidade acrescentara ao seu já farto lazer de todos os dias. Fora uma escolha indefinida que a tinha trazido de volta ao bairro. Não, não era nenhuma saudade, em que não acreditava, mas talvez o pagamento de uma dívida social que não queria deixar morrer. Fora aquela gente que tratara da sua mãe, amparando-a na desgraça e na insídia. Sabia que, quando chegasse, os seus passos a levariam primeiro às areias que agora acariciava, e depois ao pátio de entrada da fábrica, onde estava o escritório do pai do Dulcério, o mestre que ditava, há muitos anos, o horário e o esforço impiedosos das mulheres, homens e adolescentes do bairro. Por isso, não tinha respondido aos agravos do mestre. Sabia que a fábrica estava sem mestra, a mulher que geria, sob as ordens do chefe de fabrico, o trabalho de todas as mulheres, manipuladoras, azeitadeiras, visitadeiras, batedeiras, e outras designações do mesmo grupo de trabalho. Mesmo que ele o sugerisse, sem a conhecer de lado nenhum, ela recusaria. Também a sua mãe, escudando-se numa falta de jeito em que ninguém acreditava, se tinha esquivado a exercer um mando que considerava desfavorável para com as suas velhas amigas, adolescentes de vestidos compridos e de cabelos frisados.
Naquela manhã, tinha preferido comer apenas uma sandes de queijo fresco de cabra, coberto com uma pequena folha de manjericão, que colhera de um vaso do seu quintal minúsculo. Sabia que algo iria acontecer. Um acontecimento que talvez mudasse a sua vida para sempre. Depois de tantas mudanças nas suas relações profissionais e sociais, estava agora na iminência de uma viragem decisiva da sua história. Descontente com aquele controlo desmedido, e estúpido, sobre o horário de entradas e saídas da fábrica, marcado pela ditadura da sirene da caldeira a vapor do século vinte, tinha proposto o aproveitamento do e-scravo, um moderno gadget que o governo tinha vendido a toda a população, em troca de um dia de salário para a nação. Aquela coisa servia para tudo. Para perguntar a toda a gente onde estava, marcar a hora do cabeleireiro, copiar nos testes da e-escola, ouvir os hinos da república e das claques de futebol, filmar os professores a tirar macacos do nariz. Mas também era arma de vigilância nas casas de banho das empresas, proto-industriais ou de inovação, conselheiro contábil para debitar avisos sobre datas de pagamento dos impostos, indicador do dia de início do período menstrual, ou banco de estatísticas do número de hamburgueres comidos no dia anterior. Por que razão não serviria também para avisar os homens e as mulheres daquela fábrica, da sua hora de entrada e de saída?