quarta-feira, setembro 03, 2008

Treinador de Bancada #14

AS MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DA BOLA

Javier Marías é um escritor nosso vizinho. Nascido em 1951, em Madrid, dele são conhecidos em Portugal alguns dos melhores romances escritos em língua castelhana (ou espanhola, se preferirem), como «Todas as Almas» ou «O Homem Sentimental». Para além de um romancista emérito, ele também escreve crónicas sobre futebol. Pelo menos escreveu. De 1992 a 2000 publicou, no «El País» ou no suplemento «El Semanal», pequenos ensaios sobre futebol. Só sobre futebol, aquilo que ele designa como sendo um “descanso”, uma forma maravilhosa de exercitar a “recuperação semanal da infância”. Para muitos escritores – diferentes de Javier Marías que nunca jogou futebol mas é um assumido colchonero (adepto ferrenho do Real Madrid) – o futebol foi outra pátria, muitas vezes em território alheio. Albert Camus foi guarda-redes do Racing Universitaire de Argel nos seus tempos de exílio interno. No terreno de jogo aprendeu tudo sobre a moral humana. E para quem leu «A Peste» ou «O Estrangeiro» percebe bem o que ele quis dizer com isso. Nabokov, também em terra alheia, foi guarda-redes em Cambridge e, muito antes de «Lolita», deixou o vício em muitas lolitas americanas. Foi o que Marías testemunhou mais tarde, quando percebeu que as raparigas de Wellesley só escolhiam futebol, numa terra em que o futebol “macho” americano é que dita as regras.

Para um escritor de crónicas, ou para um treinador de bancada como quer que seja, a leitura de «Selvagens e Sentimentais: Histórias do Futebol», de Javier Marías, é uma tarefa e um prazer incontornáveis. São meia centena de pequenos textos de sabedoria, vício, hooliganismo decente, uma literatura admirável, para a aproximação dos povos. Trata-se de uma “literatura confessional”, pois aqui é impossível não tomar como padrão a memória de infância que todos nós temos, dos relatos radiofónicos ao domingo, dos cromos da bola trocados a peso de ouro e colados com farinha e vinagre nas cadernetas escassas, dos primeiros jogos que vimos com familiares e amigos. Outros tempos, que aqui trarei nas próximas crónicas. Hoje é impossível não recorrermos, nas nossas interpretações, a esses tempos de infância, nos quais construímos o olhar sobre o futebol. E por mais que queiramos ser objectivos, todos sabemos que o nosso olhar de hoje, sobre os tempos de ontem, são definidos pelo que somos e sabemos hoje. O nosso olhar sobre o passado é sempre reinterpretado, uma visão romantizada do que vivemos nesses tempos.

Javier Marías bem tenta recordar-se, e escrever sobre o jogo de caricas que o irmão Fernando montou e dominou nos grandes jogos das tardes de adolescência. Também eu me lembro da construção de autênticos e verdadeiros campos de futebol, em tábuas de madeira encontradas nos baldios dos valados do bairro. Sobre ela colocávamos pregos bem posicionados nos lugares dos jogadores, onze de cada lado do campo, que dividíamos ao meio com lápis e régua. As balizas eram dois pregos maiores, a pequena distância para que não fosse fácil marcar. Também nessa infância portuguesa e mediterrânica, o Vítor “Bagu” se lembrou de apor um bocado de rede de pesca nas balizas. Foi dessa forma que o jogo se tornou mais científico: acabavam as discussões sobre a entrada ou não da bola na baliza. Ah, a bola, o que era a bola? Um botão largo de vestido de mulher que roubávamos às nossas mães, desertificando os vestuários domingueiros, ou uma moeda, ainda mais rara, nesses tempos. Colocado na tábua, o botão, ou a moeda, era só chutar à vez, com a ponta do indicador a fazer pressão no polegar. Havia quem tivesse outros estilos, mais Di Stéfano, ou mais Eusébio. Claro que não havia nunca bolas para o ar, nem golos de cabeça. Torres, ou Vítor Baptista, nem pensar em jogo de cabeça. As caricas, de que Marías fala, também serviam de bola, mas eram muito grandes. O seu serviço era outro, mas isso conto contar em crónica seguinte.

Nestes jogos de simulação, menos de futebol e mais de construção de uma personalidade integrada e coesa, lá estava também o desejo, o vício, a necessidade premente de ganhar sempre. Como no futebol – diz Javier Marías – é preciso vencer sempre uma e outra vez, todas as vezes, porque não há passado na bola. Neste mundo, é sempre o presente que manda, como um condenado à vitória perene. Mais do que a felicidade da vitória passada, o que conta é a angústia de ter de vencer agora. Agora e sempre. É essa angústia que faz do futebol a desgraça que muitas vezes é. Não o facto de ser jogado a pontapé, como Cabrera Infante, escritor cubano, defende. Talvez. Talvez Javier Marías tenha razão, pois “o futebol tem qualquer coisa de inestimável e que não costuma acontecer nas outras ordens da vida: incita ao esquecimento, o que equivale a dizer que nunca incita ao rancor, coisa que só se aprende na idade adulta”.

Em breve falaremos disto.

(A Voz de Loulé, 1 Setembro 2008)