sexta-feira, janeiro 04, 2019

Arte de vanguarda e povo rural

Tal como tinha referido em post anterior [aqui], escrevi um pequeno ensaio sobre o tema da incomunicação entre artistas de vanguarda e povo rural, publicado no último número do Jornal Ecos da Serra, de Alte (novembro-dezembro 2018), que pode ser lido em papel:



A ARTE E AS COMUNIDADES RURAIS. 
O CASO DA INSTALAÇÃO ARTÍSTICA DE DANIEL VIEIRA NA ALDEIA DE ALTE

Em estudo realizado sobre as Bienais de Arte de Vila Nova de Cerveira, a socióloga Idalina Conde, num texto já clássico de 1987, fala da dissonância entre arte de vanguarda (arte moderna) e o público com o qual se comunica. Um dos conceitos fundamentais, presente nesta relação entre o artista e o público, é o da «incomunicação», dado que a arte erudita de vanguarda não é recebida por um público sem disposição estética para apreciar uma prática artística, que é uma imposição aos seus hábitos e práticas culturais.
Ora, a propósito da instalação das obras de arte do artista plástico Daniel Vieira, transformadas pela artista Renata Pawelec, e colocadas nas paredes das casas da aldeia de Alte, no concelho de Loulé, é interessante colocar algumas notas:
i) Daniel Vieira é um artista plástico consagrado, e aceite consensualmente na área da pintura e da serigrafia nacionais. Outra coisa é quando as suas obras são simuladas como baixos relevos por outra artista. Não há nada de mal neste trabalho em conjunto, mas essa situação deve ser explicada, sobretudo quando o artista expõe no espaço público;
ii) É exatamente este aspeto que se deve considerar. Quando se passa do espaço privado (a oficina ou a galeria do artista) para o espaço público (a rua), a arte assume outra dimensão e a responsabilidade atinge toda a comunidade, já que estamos no domínio do público, das gentes que habitam a aldeia e, por isso, esse público tem o poder de se auto-excluir, ou de criticar;
iii) Outro aspeto relaciona-se com o momento expositivo da arte. Quando esta se expõe de forma efémera, quer dizer, instala-se durante algum tempo, sabemos que o seu impacto visual e social é menor. Quando, pelo contrário, a arte é colocada como elemento permanente, o seu peso é tão grande quanto uma casa, uma chaminé, um museu, e assim ela passa a constituir um elemento arquitetónico da aldeia;
iv) Ora, é justamente este ponto que nos deve preocupar. As instalações colocadas nas ruas da aldeia de Alte, tornam-se mais um elemento de impacto e de estímulo visual, tal como a arquitetura, a iluminação, o trânsito, as pessoas, etc. O excesso de elementos visuais, tal como os escritos, não são benéficos para o usufruto cultural e podem tornar-se naquilo que Conde diz ser uma imposição de novos hábitos culturais, que criam tensão e violência simbólica. Como exemplo, temos o painel colocado na Rua dos Pisadoiros, rua que já tem dois painéis de azulejo sobre o tema local do esparto.
v) Que fazer, então, perante este desentendimento entre artistas e públicos?
Uma das metodologias (a maneira de fazer) usadas pelos artistas, é aquilo a que se chama a «arte participada», um espaço coletivo e comum de compromisso social compartilhado por artistas e público, em que este é parte indispensável do processo criativo. Lembro que, aquando da 1ª Semana das Artes e Culturas, em 1995, as três manifestações artísticas realizadas em Alte, obedeceram a este princípio. Como exemplo, a escultura de pedra de Afonso Rocha, foi trabalhada por algumas pessoas da aldeia; a própria pedra calcária, em que assenta o acordeão, foi encontrada e trazida por populares para a instalar no Largo José Cavaco Vieira.
vi) Finalmente, a arte encontra hoje na educação o seu parceiro fundamental. As manifestações artísticas, sejam eruditas ou populares, devem ter uma componente educacional. Os jovens estudantes de turismo da Escola Profissional podem fazer presépios com as artesãs da Torre, porque aprendem cultura local. Também os populares podem ser artistas plásticos por um dia.
Assim, as obras de arte instaladas na aldeia deveriam ter a discussão e a participação mais passiva ou mais ativa da comunidade local, porque é ela também a detentora do espaço público onde vive.
(investigador do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa)