sábado, setembro 20, 2008

Treinador de Bancada #15

O TEMPO DOS ATLÉTICOS

Como se sabe, o futebol foi inventado como prática desportiva da burguesia. Apesar de jogado com os pés, a modalidade foi rapidamente aceite, pela beleza dos gestos corporais e pela finura dos toques que os pés permitiam. As famílias inglesas que o criaram e desenvolveram vestiam-se a rigor para o praticar, de casacos tweed e bonés de fazenda. O futebol não passou despercebido aos operários mais jovens que o vislumbravam aquando do caminho para o trabalho e o copiavam dos relvados de jardins aristocráticos. Rapidamente, a apropriação popular deste desporto se desenvolveu, de tal modo que alastrou para o mundo inteiro, tanto nas colónias inglesas como nos países periféricos.

Em Portugal, conhece-se a prática da modalidade desde finais do século XIX, tendo vários clubes sido fundados na altura.

Do clube do meu bairro há pouca história feita. O sítio, na margem direita do rio Arade, entre a cidade de Portimão e a foz do rio na Praia da Rocha, vivia do complexo industrial conserveiro da Júdice Fialho: fábrica, estaleiro, armazéns, doca de atracagem e outros equipamentos. Para que os industriais dispusessem da mão-de-obra a toda a hora, as operárias e operários viviam num bloco rectangular rasteiro, dividido em 21 parcelas de quatro pequenas divisões, cada uma delas para duas famílias, uma média de oito pessoas por casa/parcela.

A este sítio se dedicaram vários topónimos: S. Francisco, por causa do convento seiscentista do brasão portimonense Castelo Branco; Estremal ou Estrumal, por origem em extrema, ou tresmalho (arte de pesca, praticada no rio); mais tarde algumas designações mais cinematográficas, como Chicago City, por exemplo.

O certo é que os criadores do clube decidem fundá-lo com o pomposo nome de Lusitano Atlético Clube Estremalense, também conhecido por LACE. Penso que a dupla designação de “lusitano” e “atlético” teve a ver com a origem dos habitantes do bairro operário, vindos das orlas camponesas da cidade, mas também de diversos pontos do país, como a região saloia de Lisboa, ou a costa litoral de Peniche a Espinho. O que é certo é que no nome ninguém nos batia e quase sempre os adversários o invejavam. E o equipamento também: aquela risca amarela diagonal na camisola vermelha, dava um ar de comendador a cada jogador. E, por causa disto, foram muitos os forâneos de outros bairros da cidade de Portimão, ou mesmo forasteiros, que quiseram vir jogar no Clube, muito antes de Schengen. Até estrangeiros nós tínhamos, pois a partir de meados dos anos 60, com a chegada dos primeiros ingleses, era fácil aliciar jovens para as equipas que participavam nos torneios organizados por nós ou por outros clubes populares da cidade.

Campos não nos faltavam. Havia um, grande, com as medidas adequadas, copiadas a olho do campo do Portimonense Sport Club, o clube de quem mandava na cidade. O outro campo, mais pequeno, era quase sempre para o jogo da malta mais nova, convocada por assobios ou gritos de Tarzan, na versão Weissmüller, muito em voga na altura. Ambos os campos ocupavam áreas baldias do terreno murado do complexo fabril e que a burguesia industrial ia permitindo, como escape das 18 horas diárias de trabalho do proletariado.

Mas o clube da minha terra só reapareceu em grande forma no período pré-revolucionário. Ele foi motivo de muitas reuniões e conversas dos operários militantes e opositores ao regime, ali mesmo na taberna da Ti Gertrudes, onde nos abastecíamos de água para toda a casa, dos primeiros cigarros da adolescência e se vendia vinho, muito vinho, em copos de três e penaltis, como homenagem ao futebol, claro. Eu, que tinha 13 ou 14 anos na altura e que andava nas noites a ler «A Mãe» de Máximo Gorki às escondidas, percebia que algo se passava. Confesso que entendi com mais dificuldade o que era o raio do “samovar” onde os personagens do romance se aqueciam, do que o tema central das conversas no quintal da taberna, com o pretexto de refundar o clube. Os rituais de iniciação e de passagem eram assim: os mais velhos protegiam os mais novos, neste caso dos muitos bufos que cirandavam à volta dos copos ou dos jogos da lerpa e do truque, nas mesas de mármore.

É por estas e por outras que o meu olhar sobre o futebol haverá de partir sempre destas memórias, e de outras que vos contarei.

(A Voz de Loulé, 15 Setembro 2008)