terça-feira, junho 03, 2008

Treinador de Bancada


Apitemos, então!

Não, não me esqueci do Apito Final. Só que a selecção de futebol tem ocupado tanto os nossos olhos e ouvidos que ninguém tem paciência para nos ler. Eu próprio vou confirmando o papel manipulador dos media, na sua profusão de futebolândia em todos os meios: rádios, jornais, televisão, web. No meu bairro, já começaram a aparecer as bandeiras, com timidez é certo, até porque este ano o que está a dar é ser sócio da selecção, uma invenção mais consonante com a desgraçada classe média que temos e ao nível do programa da Liga dos Últimos, um momento de culto do futebol nacional.

Entretanto, alguém vai ter que ir tocando o país para a frente. De vez em quando uma noticiazinha, lá no fim do jornal da noite, ou nas páginas a preto e banco dos jornais desportivos, vai informando o povo do processo do Apito Final. Sabemos que Pinto da Costa já não manda penhorar a casa de banho do estádio do dragão, que Valentim Loureiro já não manda passear a procuradora Maria José Morgado, que Pimenta Machado e João Loureiro estão fora das direcções dos clubes que dirigiram a seu bel-prazer. De Avelino Torres não vale a pena falar, de tão rasteira que a coisa é.

Quando escrevi aqui, na minha antiga coluna, em 15 de Março de 2004 (em plena euforia da 1ª futebolândia nacional) sobre as ligações entre futebol, construção civil e branqueamento de capitais, caiu o Carmo e a Trindade. Melhor, caiu o Largo de S. Francisco e o pórtico da Graça. Mas eu recordo, agora que parece que o povinho do futebol já aprendeu alguma coisa:

(…) O dirigismo no futebol é tirocínio obrigatório para quem quer ascender a cargos políticos de referência. Em qualquer currículo que se preste a provas eleitorais, lá vai a referência à gestão da direcção do clube da aldeola, ou à prática desta ou daquela actividade amadora. Em tempos, era raro o presidente de Câmara que não tivesse lugar cativo na presidência de uma qualquer assembleia-geral de um qualquer clube. Do anonimato para a associação, desta para o clube de futebol da terra, e deste para o cargo político, este era o caminho certo para o poder (…)
A sociologia há muito tempo que estuda o assunto. E é por isso que se pode ler o futuro. A corrupção no futebol é algo evidente que, mais tarde ou mais cedo, se vai provando aos poucos, e a tendência é que desça dos grandes para os pequenos. E sabem porquê? Não? Eu digo-vos: é que o caminho da futebolândia constrói-se a partir de uma rede de favores e benevolências minúsculas e invisíveis, que estruturam a fidelidade de apaniguados, empregados, funcionários e autoridades. Só assim é possível, a quem detém o poder, mobilizar em sua defesa todos aqueles que dependem dessa rede diáfana da solidariedade corrupta. Para contrariar esta rede, é só alguém meter um pauzinho na engrenagem e já está.

Ora, o que é interessante nos dias que correm é a premente necessidade de identificação com os clubes, em particular com o futebol, que muita gente vai assumindo. Esse proselitismo saloio tem várias funções: o futebol é a sua pátria e ao seu serviço até vão combater na guerra do Iraque; eles são os únicos patriotas, erguem todas as bandeiras contra o inimigo, sobretudo quando os detractores estão nos blogues e nas colunas de jornal; eles formaram-se nas escolas dos clubes e o seu bilhete de identidade dá-lhes o direito de maltratar os adversários.

Talvez se possa aconselhar algum remédio a esta gente. Quando forem à bola, quer seja na caravela em seco, vulgo pomposo estádio do Algarve, quer seja no pelado do treino do filho, levem um livrinho e leiam algumas páginas. Aconselho dois: Contra o Fanatismo, de Amos Oz e El Fútbol a Sol y Sombra, de Eduardo Galeano. Perguntam-me do que falam os livros? É melhor lerem, verão que assim perceberão melhor o futebol e claro, a cidadania…

A Voz de Loulé, 1 de Junho 2008