domingo, março 02, 2008

Treinador de Bancada 3#

A minha coluna no jornal:

A JANGADA DE RELVA

Bom, eu não queria falar de literatura mas a proposta de Gilberto Madaíl, presidente da Federação Portuguesa de Futebol, obriga-me a isso. Então não é que o homem propõe a organização do campeonato do mundo de futebol de 2018, em conjunto por Portugal e Espanha?

Depois de, no ano passado, ter dito que essa era uma “ideia peregrina”, Madaíl colocou agora o país em alvoroço. O Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, Laurentino Dias, veio rapidamente afirmar que não se deve “vaguear sobre ideias”. Claro que, como se sabe, o governo o que gosta menos é de vaguear sobre ideias. E no futebol, quem já viu alguma ideia a vaguear por aí? Cuidado, pois. É que está muito fresca, nas retinas portuguesas, a imagem dos dez estádios do euro-2004 que trouxeram a glória a Portugal, como nos velhos tempos da expansão, lembram-se? Eu lembro-me bem, nem que seja pelas bandeiras esfarrapadas que esvoaçam nalgumas janelas, ainda recordando as “boutades” de Scolari.

O Presidente da República também não ficou lá muito contente. Ou esperavam que em tempo de vacas magras ele viesse dizer que sim senhor, nós não temos mais nenhuma prioridade, e não são o novo aeroporto ou o TGV que nos vão tirar o sono ou o ordenado ao fim do mês.

Peço desculpa, mas eu desta vez apoio o presidente da Federação. Devo dizer que ele pensa com estratégia. Vê longe e sabe o que diz. Reflictam comigo: então não vamos ter em Portugal um novo aeroporto, que intensificará a vinda de espanhóis ao território português? O comboio de alta velocidade não pretende ligar-nos a Madrid, com maior rapidez? Não temos já um movimento pendular, para aquisição de bens (sobretudo combustível), para lá das fronteiras, de Vilar Formoso a Ayamonte? Então? Qual o problema de organizarmos um campeonato em conjunto com Espanha, digam? E reparem: são as federações que organizam, mas os governos que pagam. E só irão nisso depois de a ideia ter sido “pensada, projectada, estudada e calculada” (Laurentino Dias, dixit). Ou pensam que o governo se mete assim à toa num evento com a projecção patriótica desta envergadura?

Por falar em patriotismo, eu não sei porque é que tanta gente ainda anda a falar das velhas sagas com Castela, dos Filipes que nos governaram e de outros nacionalismos bem mais serôdios. Já perceberam em que mundo vivem, ou não? Pois é, vamos lá então dar lustro aos estádios, que nessa altura bem precisarão, sobretudo o do Algarve, gasto de tanto ser usado por futebolistas, músicos, gaivotas e cegonhas. Portanto, meus amigos, vamos lá pensar, projectar, estudar e calcular, que é o que os portugueses mais gostam de fazer. E os espanhóis também.

A propósito disto, já perceberam que a parte da literatura, que abordo no princípio da crónica, respeita a outra proposta, tão mal recebida por alguns sectores, os mesmos que também não perceberam o alcance geoestratégico de Madaíl. No verão de 2007, em entrevista ao “Diário de Notícias”, Saramago propõe uma União Ibérica entre os dois países da península. A concretização da tese iberista de «A Jangada de Pedra», o romance que abriu o caminho ao exorcismo de Portugal na ilha de Lanzarote. Madaíl leu a obra e, passadas duas décadas, percebeu claramente a forma de a concretizar no mundo do futebol. Pena é que os dirigentes desportivos de Espanha, e o governo de Zapatero, ainda tenham lido pouco do autor, premiado com o Nobel, que vive no seu país. Porque se o tivessem feito, agora estariam na primeira linha da defesa do mundial de futebol de 2018, nos estádios ibéricos de Portugal e de Espanha. E daqui a uns anos, quem sabe, talvez eu escrevesse uma crónica neste jornal, não sobre os estádios, mas sobre os estados. Os estados actuais de Portugal e de Espanha que, para afirmar a sua identidade comum perante a União Europeia, teriam dado o nó numa nova União Ibérica. E assim, eu já não precisaria de ir a Sevilha, para ver a peça de Saramago “In Nomine Dei” representada em castelhano, ou esperar que, só depois de Lanzarote e antes de Madrid e de Nova Iorque, Lisboa pudesse acolher a exposição sobre os 10 anos de Nobel e os 85 do autor.

Mas enfim, como sabem, estas são palavras para amantes de literatura e detractores de futebol.

(1 Março 2008)