quarta-feira, dezembro 28, 2011

A Comissão de Utentes esclarece

De cada vez que acontece um ataque a qualquer mecanismo do sistema de cobrança de portagens na Via do Infante, os media querem ouvir a Comissão de Utentes. É claro que isso não significa que possamos adiantar algo sobre os factos em si. Podemos sim, explicar o que podem significar estes fenómenos sociais no meio de uma luta que mobiliza muita gente diversa, com formas de atuar tão elásticas quanto se considere subjetivamente serem legais ou ilegais; ou melhor ainda se cabem no conceito pleno de justiça da "desobediência civil".
Clicando sobre a imagem pode verificar-se mais um destes momentos de esclarecimento.

segunda-feira, dezembro 26, 2011

A verdadeira tropa fandanga

(Foto HFR-telemóvel, Lx, outubro 2011)

O que fazer com 'esta massa de jovens precários e desempregados que o capitalismo financeiro não quer?' Perguntava, de outra forma, o profeta residente da democracia totalitária e financeira Medina Carreira. Enquanto a criatividade não se vir obrigada a emigrar teremos "a imaginação ao poder" um dia destes, diremos nós!

domingo, dezembro 25, 2011

O conceito de desobediência civil #4

O conceito de desobediência civil, consagrado na nossa lei fundamental, herda muito da linha humanista e reformista da constituição americana. Thoreau sempre olhou esse princípio como um meio ativo de participação das minorias no exercício dos seus direitos. Dizia ele, nos idos de 1848:
Votar não é só meter na urna um bocado de papel, há que tornar o voto plenamente eficaz. Uma minoria fica desarmada quando se conforma com a maioria; deixa afinal de ser minoria. Mas torna-se irresistível quando exerce pressão com todo o seu peso. Se a alternativa for meter todos os justos na prisão ou acabar com a guerra e a escravatura nenhum Estado hesitará na escolha... (p. 32)

Resistem as oliveiras

Oliveira centenária no Centro de Saúde de Loulé (foto telemóvel- HFR)

Na altura ainda não estavam na moda. Agora só as oliveiras parecem resistir à sanha ordontofóbica dos arquitetos paisagistas das câmaras municipais.

quarta-feira, dezembro 21, 2011

O conceito de desobediência civil #3

Esta tarde, o secretário de estado das obras públicas foi claro na parlamento, aquando da discussão da apreciação parlamentar do decreto que instituiu as portagens na Via do Infante: "e apelamos às comissões de utentes que deixem de apelar à desobediência civil, pois a linha é muito ténue entre a desobediência e outros atos menos legais!". Toda a gente percebeu a quem se estava a referir. Mas devia ter dito que tem desobedecido à responsabilidade de qualquer governante, de ouvir os representantes das populações, como é seu dever. E que não basta dizer que só receberá a Comissão de Utentes da Via do Infante quando for oportuno.

O conceito de desobediência civil #2

Diz Conceição Branco no Observatório do Algarve e eu só posso concordar. Que haja jornalistas com "balls like profiteroles" que digam o que pensam sem pensar antes nos seus patrões:
Para que o poder político não legitimado ceda e o Estado não cometa abusos de poder, importa cumprir o artigo 21 da Constituição. Legitimamente.

segunda-feira, dezembro 19, 2011

O conceito de desobediência civil #1

Parece ser necessário começarmos a chamar os bois pelos nomes, e a desmascarar aqueles santinhos que querem perpetuar a ditadura dita democrática sobre a maioria popular. Melhor do que eu, aquele que inspirou Gandhi e Luther King, entre outros, um senhor chamado Henry David Thoreau, explica nesse célebre livro chamado exatamente «A Desobediência Civil», escrito em 1848:
Ao fim e ao cabo, a razão prática pela qual, tendo o povo o poder na mão, o entrega a uma maioria, que o conserva durante um longo período, não é porque essa maioria tenha razão, ou porque a minoria o considere justo, mas só porque a maioria dispõe de muita força. Mas um governo em que domina sempre a maioria não pode basear-se na justiça, tal como os homens a entendem. (p.17)
[Ler+ ali no sidebar clicando sobre a imagem da capa da edição da Antígona].

Respigos da entrevista gravada por telefone...

[Diário de Notícias de 6ªfeira, 16 dezembro 2012 | clicar sobre a imagem para ler melhor]

domingo, dezembro 18, 2011

Como a cultura se enriquece



Cesária Évora não era ainda conhecida em Portugal. Em Cabo Verde era mais uma das cantoras de bar, ouvida sobretudo pelos turistas das ilhas. Foi nessa altura que estando em Lyon, no âmbito de um projeto de parceria de desenvolvimento ambiental, vi e ouvi a projeção desta mulher de voz doce e pé descalço, cantando entre cigarros e copos de uísque. Na FNAC da cidade comprei esse memorável CD de 1997, prosaicamente chamado "Cabo Verde", a sua terra sempre. Sôdade, portanto. Também para Vaclav Havel, cidadão checo e do mundo, que nos deixou.

sexta-feira, dezembro 16, 2011

Edital da casa

O correr dos dias não nos deixa tempo, vontade, paciência e outras qualidades, para aqui estarmos, com a regularidade que gostaria, junto de vós. O trabalho da CUVI - claro que entre tudo o que nos puxa o corpo, a palavra e a voz - está a tornar-se intenso, o que só significa que a nossa luta de mais de 15 meses está a tornar-se um dos maiores exemplos de movimento social há muito tempo desconhecidos no Algarve. Por isso, para além do que vou aqui deixando "na espuma dos dias", para todos os amigos e amigas que queiram acompanhar o combate do Algarve contra a cobrança das taxas de portagem na Via do Infante deixo à disposição a página FaceBook da CUVI, Comissão de Utentes da Via do Infante. Vão lá, expressem a vossa opinião, participem e reforcem a cidadania de que o país está deficitário. E voltem cá sempre que quiserem!

segunda-feira, dezembro 12, 2011

Pórtico arde na Via do Infante, no Algarve

Acabei de dar uma entrevista para a Antena1. Parece que tinha ardido um pórtico de portagens na Via do Infante, em Albufeira. Para a Comissão de Utentes as coisas são claras: condenamos todos os atos que fujam à legalidade democrática, tal como dissemos aquando do incêndio nos 3 pórticos da Via em Abril deste ano e temos reafirmado em diversos momentos. No entanto temos avisado: a insatisfação dos utentes, agravada sistematicamente com as medidas de austeridade previstas no Orçamento de Estado para 2012, vai recrudescer, de variadas formas, que se tornarão incontroláveis. Por isso, a nossa proposta de indignação aos algarvios e algarvias é esta: boicote à Via do Infante, em duas formas: passar sem pagar, para mostrar a injustiça de uma medida que causa mais desemprego e fecho de empresas; viajar na EN 125 para denunciar o caos de tráfego e a permanente sinistralidade de uma via que não foi sequer reclassificada, como prometido. Desde o passado dia 8 é isto que acontece: a Via do Infante está vazia e a 125 cheia de tráfego.
O governo só tem uma medida a tomar: suspender de imediato a cobrança de portagens na Via do Infante.

domingo, dezembro 11, 2011

Viviane: uma voz depurada em concerto.



Viviane, no concerto do Teatro Municipal de Faro, ontem à noite, mostrou que não é só dona de uma das vozes mais interessantes da atual música que se faz em Portugal. Não se trata apenas da depuração de uma voz que atenuou alguns timbres residuais de outras influências, mas de uma postura vocal sóbria e expansiva quanto baste, para encher os instrumentos que a acompanham.
Os recursos vocais e corporais, que ganhou em anteriores experiências na música tradicional e no pop, são usados com parcimónia na cenografia de cada canção e a diversidade vocal torna o repertório atrativo para várias gerações. Desde os temas mais pop dos velhos "Aspas", que puseram a trautear a gente nova, até aos tangos e musetes que encantaram os mais seniores, o concerto serviu para isso mesmo: provar que Viviane não se refugia num espaço contido do fado, agora tornado foco musical de exaustão, com a confirmação da UNESCO. E que intérprete tem a possibilidade de mostrar dotes de instrumentista e de uma dicção irrepreensível na língua francófona, digam lá?
Das homenagens a grupos e autores da canção, foi bom ouvir um tema clássico dos "Heróis do Mar", agora a comemorarem 20 anos de fundação.
Talvez eu próprio gostasse de ouvir um pouco mais de guitarra portuguesa a solar nos temas mais fadistas, só isso.

segunda-feira, outubro 24, 2011

Catálogo da criatividade anti-austera

[foto João Martins]

O João Martins está a construir um catálogo iconográfico de uma das mais importantes manifestações anti-austeridade em Portugal, que lembram a utopia das manifestações anti-capitalistas no pós Abril de 74. Para quem viveu esse período é fácil constatar como os ciclos de imaginação e de criatividade se repetem e sucedem, como tem sido ao longo da história da luta de classes no mundo. Vão lá ver a beleza que está por detrás daquelas imagens (link).

terça-feira, outubro 18, 2011

Uma petição popularmente participada

A petição apresentada pelos utentes da Via do Infante (es-scut do Algarve) contra a introdução de portagens vai descer finalmente ao plenário da Assembleia da República, no próximo dia 28 de outubro, com votação prevista para as 12h. Apesar de ter sido a primeira petição contra portagens nas ex-scut, entregue em fevereiro deste ano com cerca de 14 mil assinaturas, é a última a ser discutida e votada na AR. Penso que o facto prende-se com a complexidade e dificuldade que os deputados do PSD, do PS e do CDS irão ter publicamente perante os seus eleitores. A singularidade do Algarve obrigou a Comissão de Obras Públicas a diferir sistematicamente a discussão e como eu previa o início da cobrança foi também sendo sucessivamente adiado. E a razão é só uma: a luta de rua, organizada, alargada e convicta dos algarvios.
Mesmo com a ameaça da dita 'inevitabilidade', afirmada pelos autarcas e responsáveis algarvios, que passivos e de braços cruzados esperam a queda no precipício da economia do Algarve, o que é certo é que os utentes da Via já ganharam muitos meses de não cobrança: desde 15 de outubro de 2010, quando se iniciou a cobrança das scut já portajadas; desde 15 de abril deste ano, ainda no governo PS; desde todas as datas que governo e media lançam sistematicamente como isca para os algarvios.
Por isso, a presença do maior número de utentes na AR, na 6ª feira dia 28 de outubro, é decisiva como forma de mostrar a deputados e governo que os algarvios não se calam, como aliás sempre fizeram perante as ditaduras da capital, do reino, de Salazar e da democracia totalitária dos nossos dias.
A propósito abaixo transcrevo o apelo dos vários movimentos que lutam contra as portagens na Via do Infante:
Amigos e Utentes do Algarve. A petição n.º 125, "Contra a introdução de portagens na Via do Infante", subscrita por 13.389 cidadãos, irá ser discutida no próximo dia 28 de Outubro, sexta-feira, em sessão plenária da Assembleia da República. Será mais uma oportunidade para exigir ao Governo que desista de introduzir portagens na Via do Infante. As entidades promotores estão a organizar uma viagem a Lisboa no sentido dos Utentes estarem presentes e assistirem ao que será discutido e protestar junto da assembleia da República e palácio de São Bento. Temos um autocarro com lugar para 50 pessoas. Partidas Faro - Garagem da Rodoviária 6h. Albufeira - Vale Paraíso 6.30h. Regresso 18h. Reservas - 934126705, 963172608, 913017881. Partilhem sff.
Obrigado.
Ler+

sexta-feira, outubro 07, 2011

Lotta Contínua

Esta luta já não é só contra a ditadura democrática totalitária do capitalismo na Europa. É também uma luta contínua contra a passividade e a estratégia dissuasora dos eleitos burgueses na política profissional, e a favor da cidadania livre.

segunda-feira, agosto 08, 2011

Conto

O e-scravo subversivo

[5]

A água do rio estava tépida, vinte graus de temperatura era pouco para um verão quente, mas talvez fossem as águas frias da serra que ainda desciam pelos calcários do barrocal. Próximo da foz do rio, de certeza que a água convidaria a um banho de mar, como aqueles que, com as suas amigas de infância, dava nas pedras, os blocos de protecção da costa urbanizada da estância balnear, que a burguesia romântica da cidade acrescentara ao seu já farto lazer de todos os dias. Fora uma escolha indefinida que a tinha trazido de volta ao bairro. Não, não era nenhuma saudade, em que não acreditava, mas talvez o pagamento de uma dívida social que não queria deixar morrer. Fora aquela gente que tratara da sua mãe, amparando-a na desgraça e na insídia. Sabia que, quando chegasse, os seus passos a levariam primeiro às areias que agora acariciava, e depois ao pátio de entrada da fábrica, onde estava o escritório do pai do Dulcério, o mestre que ditava, há muitos anos, o horário e o esforço impiedosos das mulheres, homens e adolescentes do bairro. Por isso, não tinha respondido aos agravos do mestre. Sabia que a fábrica estava sem mestra, a mulher que geria, sob as ordens do chefe de fabrico, o trabalho de todas as mulheres, manipuladoras, azeitadeiras, visitadeiras, batedeiras, e outras designações do mesmo grupo de trabalho. Mesmo que ele o sugerisse, sem a conhecer de lado nenhum, ela recusaria. Também a sua mãe, escudando-se numa falta de jeito em que ninguém acreditava, se tinha esquivado a exercer um mando que considerava desfavorável para com as suas velhas amigas, adolescentes de vestidos compridos e de cabelos frisados.

Naquela manhã, tinha preferido comer apenas uma sandes de queijo fresco de cabra, coberto com uma pequena folha de manjericão, que colhera de um vaso do seu quintal minúsculo. Sabia que algo iria acontecer. Um acontecimento que talvez mudasse a sua vida para sempre. Depois de tantas mudanças nas suas relações profissionais e sociais, estava agora na iminência de uma viragem decisiva da sua história. Descontente com aquele controlo desmedido, e estúpido, sobre o horário de entradas e saídas da fábrica, marcado pela ditadura da sirene da caldeira a vapor do século vinte, tinha proposto o aproveitamento do e-scravo, um moderno gadget que o governo tinha vendido a toda a população, em troca de um dia de salário para a nação. Aquela coisa servia para tudo. Para perguntar a toda a gente onde estava, marcar a hora do cabeleireiro, copiar nos testes da e-escola, ouvir os hinos da república e das claques de futebol, filmar os professores a tirar macacos do nariz. Mas também era arma de vigilância nas casas de banho das empresas, proto-industriais ou de inovação, conselheiro contábil para debitar avisos sobre datas de pagamento dos impostos, indicador do dia de início do período menstrual, ou banco de estatísticas do número de hamburgueres comidos no dia anterior. Por que razão não serviria também para avisar os homens e as mulheres daquela fábrica, da sua hora de entrada e de saída?

domingo, julho 31, 2011

Enrique Vila-Matas


De autores de língua castelhana leio muito: espanhóis por supuesto, argentinos, colombianos, por aí. Daqui do lado de Espanha, entre muitos outros de mais antiga leitura, Javier Marías (que belas crónicas sobre la pelota), Arturo Peréz-Reverte (de escrita mais que cinéfila) e Enrique Vila-Matas. Deste último comprei, ao preço da chuva, um pacote com 6 livros há uns anos na Bertrand, editados pela Assírio e Alvim, no meio dos quais vinham jóias como Bartleby & Companhia, História Abreviada da Literatura Portátil e Longe de Vera Cruz, que agora leio, depois de o pendurar, uns tempos, na cabeceira dos livros em trânsito.

Leitura obrigatória de fim de semana

Ainda vou a tempo de aconselhar uma leitura excelente, para ler pausadamente - pensando na nossa rua, na nossa cidade e nos nossos filhos - da autoria do João Martins (link).

sábado, julho 30, 2011

Mais abate de árvores, não!

Também eu estudei nesta escola. Três anos, à noite, para completar o 12º ano. Também eu corri muitas vezes à sombra da mata do 'liceu' de Faro. Agora sabemos que a Parque Escolar (empresa de amigos do anterior governo, criada para 'requalificar' as escolas secundárias) quer substituir as velhas árvores regionais, por espécies exóticas. A minha amiga Rosa Guedes protesta e muita gente com ela. Pena é que a presidente do Conselho Geral (que raio de mania) se preocupe mais com a 'obra' do que com o ambiente. Ler+ na expressão linkada.

sexta-feira, julho 29, 2011

Como lutar contra as portagens

Helder Nunes, diretor do" barlavento", tem manifestado o seu apoio à causa da luta contra as portagens na Via do Infante. Quase sempre é mais radical do que a Comissão de Utentes (CUVI), o que se percebe dada a diversidade de perspetivas que marcam qualquer movimento social. Quando esteve presente na conferência de imprensa da CUVI defendeu algumas ideias para a ação de luta que agora expressa mais em detalhe no seu editorial. Eis um excerto:

Já manifestámos neste espaço o nosso total desacordo em relação à imposição de portagens numa estrada que não é scut, nunca foi em 70 por cento do seu traçado e já está paga. Os algarvios não estão a utilizar um benefício intitulado «sem custos para o utilizador», como acontece noutras vias construídas neste sistema e que estão a ser suportadas na base das tais parcerias público-privadas.
Ler+

quarta-feira, julho 27, 2011

Mais um bocado do conto

O e-scravo subversivo

[4]

O resultado de tal inovação e criatividade, de que toda a gente tinha a boca cheia, era o atraso sucessivo dos homens e das mulheres na entrada da fábrica. O e-scravo tinha sido acertado pelo relógio da torre da igreja, a matriz do século dezasseis em permanente ruína física e moral, mas cuja torre ainda suportava as horas badaladas de sessenta em sessenta minutos. Aquela máquina nunca falhava. De tal modo que o seu filho Dulcério, apaixonado pelas guitarras eléctricas, utilizava aquela sonoridade para servir de metrónomo e de afinador da sua Fender. Mas se aquele horário cristão nunca falhara, como era possível que o e-scravo andasse permanentemente atrasado, sobretudo nas horas de entrada, no início da manhã e após o almoço?

A areia estava quente e fina, como sempre, escorregando com delicadeza por entre os dedos dos pés, grão a grão, voltando de novo a caír para definir as suas pegadas firmes e regulares. Aquela praia, na margem do rio, construída anos a fio com os aluviões mestiços das descargas de terra argilosa da serra e das enchentes das marés vivas do oceano, era o paraíso de Maria Antónia. E fora aquela praia que decidira olhar, de novo, quando ali regressara.

Tinha chegado à aldeia – a que ela preferia chamar bairro – após muitos anos de ausência na cidade, na qual trabalhara e estudara ao mesmo tempo. O que aprendera, em muitos empregos diferentes, definidos temporalmente pelo contrato individual de seis meses certos, enchia agora as quatro páginas do seu curriculum vitae. Nas mãos do mestre da fábrica, aquelas quatro folhas pareciam um livro, o livro da sua jovem vida de pouco mais de duas décadas que estava a entusiasmar o homem, defensor da instrução do corpo e da alma daquela juventude perdida entre televisão, drogas e sexo. Começas amanhã, como manipuladora de peixe, que é por aí que todas as mulheres se iniciam neste mister, dissera-lhe o chefe de fabrico da produção, o topo da pirâmide industrial daquela fábrica de peixe. E remata-lhe, afirmando a superioridade masculina do território: Ou pensavas que entravas aqui como mestra, não? Lá por teres vindo da grande cidade e teres assentado o cú em muitos escritórios, não penses que és a mais competente. Nem essa aldrabice das novas oportunidades te serve. Enquanto afirmava o seu mando, olhava os olhos e a face daquela mulher, quase impassível, tão calma quanto a figura da Mona Lisa, pespegada no quadro de parede do seu escritório, já gasta dos aromas de salmoura do peixe cozido e do levante oceânico de Marrocos. Percebeu, de imediato, que a mulher era inteligente e talvez lhe viesse a dar problemas. Mas naquele verão quente, com mais sardinha no mar do que água salgada, não podia desperdiçar um par de mãos que se oferecia, provavelmente ágil e certeiro a cortar a cabeça da sardinha e ainda mais preciso a deitá-la na lata azeitada.

quinta-feira, julho 21, 2011

Via do Infante sem portagens

Muita coisa se poderia contar da Assembleia de Utentes da Via do Infante realizada no passado dia 9, em Loulé e que a foto dá conta. Tendo sido eleito um grupo de trabalho mais restrito que reuniu no passado dia 19, também em Loulé, uma das suas primeiras deliberações é a resposta aos responsáveis autárquicos do Algarve, que defendiam a não aceitação de portagens e hoje dizem o contrário. Bastou mudar o governo, portanto. A resposta será dada amanhã (22 julho), em conferência de imprensa, no restaurante Austrália, na EN125, pelas 10:30h.

quarta-feira, julho 20, 2011

Mais um naco de conto à 4ª feira

O e-scravo subversivo
[3]

Voltou a lembrar-se da tal Maria Antónia. Que raio! Se ela era pouco mais nova do que ele e trabalhava ali naquela fábrica arcaica, onde a sua mãe deixara o corpo e a alma, mas ganhara artroses nas mãos e nas costas, ele deveria conhecê-la. Aquele nome, outra vez, a martelar-lhe os ouvidos e a calcar-lhe as têmporas. Desde que saíra da aldeia e rumara à capital da sua ambição, nunca mais voltara àquela terra. Agora que tinha sido transferido, ao abrigo da lei da mobilidade e da flexibilidade das aprendizagens de novas competências que o governo lá tinha inventado, logo teria de vir parar àquele lugar. Como se fosse obrigado a olhar-se, demoradamente, naqueles espelhos de feira da sua infância, ora côncavos, tornando-o mais anão do que criança, ora convexos, fazendo-o parecer o magricela do gigante de Moçambique que vira numa qualquer feira de S. Martinho.

À porta da fábrica, o mestre de fabrico controlava o seu velho relógio de ponteiros. Debaixo do vidro, baço de muitos riscos, os ponteiros marcavam oito horas, e nada. Onde estavam os seus operários e operárias que costumavam marchar silenciosos e apressados, em fila, nos saudosos tempos da sirene estridente de vapor, que emergia da caldeira de carvão nos anexos da fábrica? Ele, que tinha levantado o braço, contrariado, para votar a favor daquele novo instrumento sonoro, gostava ainda mais dos idos da buzina. Nesses tempos, o seu homem percorria de bicicleta todo o bairro e arredores, soprando o grande búzio do mar, como se fosse o saxofone da filarmónica da recreativa rica, onde aprendera a tocar e da qual saía para feiras, romarias e saudações aos presidentes da república, eleitos ou não.

Ele sabia de quem era a culpa daquela merda. Aquela Maria Antónia, armada em revolucionária, é que tinha proposto que a chamada para a fábrica fosse feita através do e-scravo, um dispositivo electrónico em forma de cravo que o presidente da república mandara conceber e entregar a todos os trabalhadores, para que assim pudessem estar em permanente contacto, vinte e quatro horas por dia, com todos os membros do gabinete gestor da nação. Mas por que razão aquela gente, que vivia em barracas e era quase toda analfabeta, tinha que possuir telemóveis, plasmas de TV, automóveis trocados pelo abate e, ainda por cima, o e-scravo? Aquela flor de tecnologia que só os antigos alunos do liceu eram capazes de manobrar? Tudo por culpa daquela mania da representatividade mais participada do raio da cidadania, que o seu patrão, aquele de quem era um extremoso colaborador, agora tinha inventado. Era por essas e por outras que qualquer uma – sim, por que as mulheres sempre foram mais escorregadias do que as enguias – vinha agora com ideias, como a Maria Antónia naquela reunião sobre a produtividade e a competitividade das conservas de peixe num mundo globalizado, que o presidente da Câmara tinha convocado.